CARTA 60 – De Jeff Vasques para Adriana Zapparoli

… em resposta à Carta 48.

Tua botânica gramática, essa grama errática por entre teus silêncios, caligramas, essa tua erótica ciência aflorada, incandescências… e esse pólen todo ao abrir a carta, Hydnoras alienígenas no subterrâneo das palavras, larvas na funda lavra de sua sonora poesia. Já minhas palavras são menos exatas, Adriana, mas, espero, te entreguem algo dessas minhas samambaias cotidianas, esse verde na varanda… palavras como formiguinhas que despejo num canto para lhes ver o caminho e lhes pôr o dedo no meio e ver, então, que outro caminho tomam. Por mais que se percam, mintam, deem giros e voltas sempre retomam sua carreira – humilde – rumo ao escuro do chão. Que elas te guiem na escuridão.

Querida Adriana, no encarte que me enviaste embrulhando toda tua mensagem, me pergunta o que penso da poesia experimental… e mesmo que não me fizesse tal pergunta, diante da tua obra essa pergunta nasceria. Tua poesia nos encara inquisidora, nos obriga a rever e desver a linguagem… é preciso habitar as profundezas de sua escritura por algum tempo até começar a ver, aos poucos, no escuro, silhuetas… quiçá, bioluminescências… eu acho a poesia experimental fundamental, por mais que envolva riscos…

Gosto de pensar na metáfora que Maiakovski criou sobre os diferentes papeis de diferentes poesias. Ele acreditava que, sim, o poeta, como a energia elétrica, deveria chegar a cada uma das pequenas casas espalhadas por todo o território e iluminar esses espaços individualmente, comunicar-se com seus moradores, com suas questões de forma a lhes tocar o coração, a mente, a imaginação… a poesia, portanto, é preciso se fazer popular… mas ele entendia, também, a importância das centrais de energia, de maior voltagem, tensão, que alimentavam, não as casas diretamente, mas nutriam outras subestações, menores, intermediárias, que, por sua vez, levariam energia às casas. Penso que a poesia experimental, os poetas experimentais (ou, ainda, as fases experimentais dos poetas) ocupam esse papel de acumuladores de alta voltagem, que alimentam outros tantos poetas (ou mesmo leitores que comportem tal eletricidade). É a experimentação que nos alarga os horizontes da comunicabilidade, mesmo que num primeiro momento tornem a comunicação mais difícil, complexa.

Penso, por exemplo, no concretismo, com sua alta carga explosiva de experimentação plástica, visual, com as palavras e versos compondo com o espaço branco da folha, e que permitiu, posteriormente, que toda uma nova geração de poetas se apropriasse de elementos dessa “escola”, ainda que não a seguissem, ainda que não fizessem, stricto sensu, poesia concreta. De certa forma, o que antes foi experimentação, agora é legado que grande maioria dos poetas carrega, como neste meu poema:

tempoaotempo

sigo virando
esta areia fi
na sobre
teu no
me
a

t

é
que
setor
neapen
asesomen
teapenasnome

O risco, a meu ver, da poesia experimental é o de se romper a comunicação. Esse dilema também aparece em outras artes: entre a comunicabilidade (que permite que essa arte dialogue com mais gente) e as inovações formais (que permitam externar da melhor forma o estilo/impulso próprio do artista). Quando a comunicação se rompe, o artista se perde dentro de seu emaranhado de maravilhas sígnicas, e o mundo segue incólume. No outro oposto, quando a comunicação se torna o foco excessivo, estamos beirando o discurso cotidiano, prosaico, e assim, sem estranhamentos, sem as “pedras” no meio dos feijões, na metáfora de João Cabral, como iscar o assombro, a poesia? São riscos que correm os poetas… no papel e na vida… (já peço desculpas, Adriana, por discorrer assim tanto sobre esse assunto, é porque me toca e penso muito sobre!)

Sua poesia certamente é dessas de alta voltagem, que não chega facilmente aos leitores, por mais que a sonoridade encante logo de cara a qualquer um (e como é bom resgatar a força e beleza dos sons de nossa fala, seu assombro, palavras mágicas, feitiços… você faz isso com maestria!). Teu trabalho é artesania, pedra bruta lapidada em mil faces, miríade.

Eu vivi períodos de maior experimentação, da vivência da palavra como pele, como corpo e me deixando levar por seus ritmos, sons, por sua corporalidade e também incorporando os jogos espaciais, com a fragmentação do dito, da palavra no branco da página. Muitas vezes, inclusive, sinto que me falta vivenciar mais desses caminhos em que a palavra me guia sem bússolas. Era essa poética que defendia neste poema de muitos anos atrás:

Poética

Poesia se faz de olvido
do sono que a língua traga
solve no palato a palavra
e na ponta do lapso...
a guarda.

Mas, já há algum tempo, por movimentos próprios da vida coletiva, tenho me esforçado no sentido de conquistar maior comunicabilidade, levado que sou, cada vez mais, por uma urgência de que a palavra aja no mundo, o transforme… e as experimentações seguem, mas jogando com outras estruturas, por exemplo, em poemas em que tento “romper a página” no diálogo direto com o leitor; outros em que versejo notícias de jornal, documentos oficiais, fazendo do cotidiano o espanto; ou revelando as próprias estruturas do poema, o que não está à vista, desfetichizando a escritura, ou, ainda, na construção de poemas “performáticos”, moldes de poemas a serem preenchidos por qualquer um, e, também, poemas-pixo, como dizem, feitos para circular em muros, paredes, camisetas, como neste curtinho: “Quem TRANS forma / o CIS tema / faz o meu gênero”. Nessa busca da palavra-ação, do agir a poesia, cheguei mesmo às raias de negar a escrita e, como Rimbaud, beiro, muitas vezes, o abandono da palavra, nesse anseio de fazer da vida, do mundo, a verdadeira poesia:

abandona
as palavras

que dizem
nada

com
nada

faz das mãos
sua boca

só diz
coisa

com
coisa

…mas a palavra sempre volta, Adriana, sempre me acolhe, ela me é necessária e duvido que a abandone definitivamente, por mais que a palhaçaria venha tomando cada vez mais espaço e tempo.

Sobre o amor, querida poeta, piso com delicadeza nesse terreno. São terras férteis, mas também movediças. Como você, Adriana, já soube bem desse amor envolto em escuros que você mencionou em sua carta, já sofri muito… não é fácil abraçar e se vincular sabendo da perda, da morte inevitável… esta sociedade nos fragmentou e isolou (não só o corona) e é difícil juntar os cacos, que colados, estranhos, nos espiam do aparador, como ironizava Drummond… amor e dor, as rimas mais esdrúxulas da poesia mundial… mas, igualmente, as mais inegáveis.

“um corpo dentro do outro se desfazendo. a digestão longa de tuas mãos, esse bolo de desejo-morto descendo os intestinos, a decomposição maciça de tudo que foi encontro, caminho.

(…)

mastigo o que era carne, mastigo, mastigo o sonho até o pó; te mastigo a boca, o amargo, o nó, uma a uma as letras de teu nome, mastigo todo o púrpura das horas, tuas unhas às costas, tua dor inatingível de carinho, tua vulva… mastigo até deixar só a textura de teu rastro escuro na língua. te desamo até os gânglios, até os ossos. desbrilho teus olhos no descer necessário dos esôfagos. te obrigo a ser em mim o oco. meu nada e meu tudo. osso.

aguardo na dor lenta dos peristálticos movimentos a deglutição perfeita de teu miolo ainda vivo de ausência.”

Mas o tempo passou e fui aprendendo, ou melhor, desaprendendo os modelos do amor. Hoje, brinco, busco nas relações afetivas a “redução de danos”, caminhos que façam dele menos posse, neuroses, violências… são caminhos de amor “livre”, difíceis, igualmente, mas creio que de maior abertura, companheirismo, como digo no fecho do poema “Ímpares”:

Não,
juntos
não somos um,
nem somos feitos
um para o outro...
mas ninguém negará
que unidos
somos muito
- mas, muito! -
mais soltos.

Querida Adriana, espero que ainda possa, passada a pandemia, conhecer meu Magrólhos, meu palhacin, meu melhor de mim, e que ele possa te reconectar com as memórias boas de família e circo. Espero também que possamos conversar com calma, tantas histórias! – sobre minhas viagens de kombi (e sobre como viajar te move!). E te dizer o quanto Cortázar – que amamos! – caminhou comigo (ele que também fez uma viagem de kombi com sua amada, Carol, pela França). E que até lá você possa perceber sua poesia como tuas palavras de força, palavras-feitiço, que podem suspender um tanto da angústia, suspender um tanto da morte (me suspenderam, aqui, na beleza enigmática de seu feitiço sonoro). Sei da dificuldade da poesia se fazer corpo agora… comigo o mesmo se passa… mas torço pra que sua flora fantástica, seus animais maravilhosos e sua imaginação sensual e poderosa possam se fazer palavras em sua boca e mãos. Feliz de conhecer um pouco mais de ti e de uma trajetória poética tão rara!

Abraço carinhoso,

Jeff

chuvas de novembro de 2020

P.S.: Agradeço os lindos plaquete poético e o cartão que me mandou! Mando também cartões postais poéticos que vendia em minha viagem de kombi pela América. Espero que iluminem teu olhar!

Imagens: Jeff Vasques

Carta 59 – De Marcos Siscar para Maria Teresa C. R. Moreira

… em resposta à Carta 47.

Campinas, 13 de novembro de 2020.

Minha cara Maria Teresa,

Que encanto sua carta, escrita “à mão e coração”! Você usou essa expressão na intenção de Rebekah, mas vou supor que possa ter sido para mim também. Da minha parte, fico muito feliz em saber que minha mensagem a Antonio tenha chegado até você de forma especial. E assim começamos a conversar antes mesmo de nos dirigirmos um ao outro.

Aliás, queria pedir desde já para me desculpar se não envio uma resposta escrita à mão, embora seja de coração. Faz um tempo enorme que troquei a caneta pelo teclado. Primeiro foi a máquina de escrever (pois é, eu gostava de escrever à máquina), depois o computador. Lá se vão mais de três décadas que acho natural ver as letrinhas aparecendo na tela. A escrita vai saindo quase que simultaneamente dos dedos, enquanto vou ditando pra mim mesmo com a voz interna. De vez em quando, acompanho as frases que penso com o movimento dos lábios, como se isso ajudasse a marcar os ritmos e a fazer na boca o desenho dos sons. Se não é escrita à mão, a carta continua sendo uma escrita da mão, do corpo.

Lendo sua escrita bem desenhada e aerada, distribuída levemente na folha pautada, acabei me lembrando dessas histórias de máquina de escrever. Se me permitir, conto um episódio, que é uma forma de falar de mim e da poesia. A primeira máquina de escrever que tive, ainda na adolescência, foi comprada com muito custo por minha mãe, imaginando que a prática da “datilografia” (palavra anacrônica hoje) me ajudaria a conseguir algum trabalho de escritório na cidade onde morava. Naquela máquina, meus irmãos aprenderam a datilografar e eu, ao invés de aperfeiçoar a técnica… acabei escrevendo alguns dos meus primeiros poemas. Papel sulfite era um luxo que não tínhamos. Lembro que usava folhas pautadas arrancadas de caderno ou material de propaganda com uma face em branco, o que houvesse. Bem mais tarde, no livro O roubo do silêncio, escrevi um texto, meio poético, meio reflexivo, sobre essa experiência da máquina de escrever. Está logo abaixo, como post-scriptum, se tiver curiosidade.

Eu dizia que escrever à máquina continua sendo para mim uma forma de escrever com o corpo. É bem diferente de escrever à mão, claro. Mas não é só um “filtro” ou, eventualmente, uma forma de “censura” da espontaneidade. Pode ser isso, também, dependendo do caso. Por outro lado, conta muito a relação que temos com os textos que escrevemos: se preferimos manter a intuição inicial, as primeiras formulações, ou se preferimos corrigir, elaborar. Sou do segundo tipo. Gosto de explorar as primeiras ideias, misturar com outras, ir mexendo pra ver até onde vão. A intuição inicial está sempre lá, mas às vezes se desfigura; outras vezes, sinto que descobri alguma coisa, trazendo palavras daqui pra lá e de lá pra cá, cortando e colando. De toda forma, a intensidade do pensamento e da emoção é sempre real. E é isso o que mais conta.

E tem também o outro lado da moeda. É algo mais difícil de explicar, mas que me parece importante. Gosto de pensar que, quando sou espontâneo, quando estou usando o “corpo” (pra retomar a metáfora que usei acima), foi a memória que ajudou a consolidar aqueles gestos, aqueles gostos, aqueles movimentos, moldando-os ao longo do tempo. Não preciso pensar na posição dos meus dedos para escrever no teclado, por exemplo. Basta posicioná-los sobre a fileira do meio: eu penso a frase e eles vão fazendo tudo sozinhos, sem que eu precise acompanhar seus movimentos. Esse automático não veio do nada. Foi o corpo que fixou os gestos, exercitando-os, estabelecendo hábitos, às vezes em nome da necessidade, às vezes do gosto, às vezes da disciplina. Acho que esses automatismos do corpo influenciam muito nossa interação com o mundo.

Você tem toda razão quando imagina que um desses meus hábitos é “pensar escrevendo, […] escrever pensando”. E sei que para muita gente escrever poesia não tem nada a ver com pensar (seria mais um vício que um hábito). Pessoalmente, acho que são coisas complementares: nunca há coração sem pensamento, nem pensamento sem coração. Assim como o pensamento, o coração sozinho pode ser origem de coisas ótimas, mas também pode gerar infelicidades. Quem já viveu um tanto sabe disso. A gente tem que lidar com conflitos, com limitações, com perdas pessoais… É exigir muito do coração que ele se vire sozinho. A consciência e a reflexão ajudam a suavizar os desequilíbrios da vida, mas também a dar maior consistência às emoções que nos fazem bem. Acho que o mesmo se aplica à poesia.

Gostei da sua ideia de que é preciso “Alongar o olhar / Para espichar a vida”. E fiquei pensando se isso não se aplicaria também a essa mistura de sentimento e pensamento que eu chamaria de poesia. Fiquei pensando se alongar o olhar, ou seja, aumentar o campo de visão, estender a vivência para além do que está dado, não poderia ser o resultado das duas coisas, quando o sentir se encontra com o pensar.

Enfim, estou divagando a partir de uma diferença que você notou nos nossos modos de escrever. Curiosamente, alguns me acham muito racional, enquanto outros dizem que sou “sentimental”. Quanto a mim, penso que o que muda mesmo são as referências de cada um. Você diz, na sua carta a Rebekah, que é “toda coração”; que, inclusive, tem uma relação especial com o ponto de exclamação por causa disso. Sei que é uma particularidade importante mas, como você mesma notou, não é algo que nos afasta. Quando há inteligência de vida, há sempre um lugar para a empatia, apesar dos pontos de partida e das ênfases diferentes – ou seja, apesar das diferentes pontuações. Eu, por exemplo, sou um dos poucos que conheço que usa ponto e vírgula (rs). É um hábito que vem da língua francesa. O que conta realmente é a conversa, o alargamento das relações, já que o essencial está posto, para além das diferenças.

A empatia aparece na sua carta, e vejo que temos alguns percursos em comum. Não apenas o do rio Atibaia, que passa perto da sua casa e da minha. Você diz, por exemplo, que “decidimos ambos voltar” a Campinas. Teríamos histórias a compartilhar. Aliás, muita delicadeza sua fazer um poema (“Chegada à francesa”) a partir dessas experiências. Obrigado! Não é um “jardim à francesa”, nem uma “saída à francesa”: é uma chegada à francesa. Você inverte o negativo da expressão e a transforma em coisa bonita, receptiva. Aquilo que poderia parecer um gesto de desistência, uma saída furtiva, eventualmente ardilosa (“saída à francesa”), se transforma em encontro, em aventura calorosamente humana. Entre “portos e quintais”, aqui estamos, em correspondência com os lugares, com lugares outros, espichando nossa vista.

Você me disse que estava “grata”. Mas sou eu que deveria agradecê-la. Porque sempre que um leitor recebe como seu aquilo que escrevo, fico imensamente grato e surpreso. Não é raro que nos leiam, claro, mas é mais difícil que alguém se considere o destinatário particular de uma carta ou de um poema. Poderia haver felicidade maior para quem escreve? A hospitalidade de quem recebe e manifesta esse encontro é uma deferência especial, que merece ser agradecida.

A gratidão também tem suas histórias.

Certa vez, escrevi um texto sobre a gratidão. Era um texto acadêmico, meio técnico, sobre um filósofo, mas vinha de uma curiosidade grande a respeito desse afeto (a gratidão, o reconhecimento), que traz tanta coisa consigo. Lembro que o que mais me impressionou durante a pesquisa foi uma passagem do filósofo Nietzsche, na sua autobiografia. No dia em que fazia quarenta e quatro anos, ele pensou: “Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira?”. E acrescenta que, naquele momento, sentia que sua vida estava completa e que poderia finalmente começar a narrá-la: é porque ele reconhece sua vida e é porque ela é digna de reconhecimento que decide escrever a sua autobiografia. Havia ali provavelmente um sentimento de autossatisfação, que não vem ao caso. O que me chamava a atenção na frase era principalmente a ideia de que as nossas experiências vividas são dignas de gratidão. Como se, diante da nossa vida, independente do que tenha acontecido, esse reconhecimento do passado vivido fosse sempre necessário. Como se viver fosse receber um dom, um presente: não um dom divino (no caso de Nietzsche, não poderia ser), mas porque a vida acontece e, quando reconhecemos que aconteceu, ela passa a nos pertencer, a nos definir, a se identificar com o que somos.

É uma forma muito serena de ver as coisas, claro, porque a gratidão nem sempre é fácil. Será que algum dia conseguiremos ser gratos a 2020, apesar de todas as perdas, inclusive as perdas pessoais? É uma pergunta difícil e dolorosa. Mas em algum momento ela precisará ser colocada. Vai ser preciso identificar as consequências de 2020 sobre nossas prioridades, sobre nossa forma de viver. Esperemos encontrar, então, bons motivos de gratidão, uma relação menos predadora com a vida, com a natureza, com os outros.

Mas, voltando ao assunto, acho que essa necessidade de dar, de receber, de agradecer tem a ver com sua ideia de que (apesar de tudo que nos distingue e distancia) somos “interdependentes”, estamos em relação. E que o agradecimento nada mais é do que uma forma de marcar esse fato. Uma forma de marcar isso com um gesto do coração.

Às vezes, queremos agradecer uns aos outros como duas pessoas que, ao se cruzarem na rua, escolhem sempre o mesmo lado da calçada. Uma vez, duas vezes, acabamos fechando a passagem da outra pessoa. São curiosas essas situações de impasse, não é? Eu sempre fui fascinado por isso. A gente tende a achar que há ali algum traço comum de personalidade. Mas não é, necessariamente. Os corpos se encontram, mas nem sempre o coração vai pro mesmo lado. Às vezes, a relação se dá em forma de impasse. Diante dele, alguns preferem fazer a gentileza e dar a passagem; outros riem achando engraçado; e há aqueles que afetam irritação, que vão embora pisando duro, como se acusassem a outra pessoa de um estorvo. Mas tendo a achar que o pior dos casos é o daquele que anda sem se importar com nada, fazendo com que os outros se desviem. Esse é o que gostaria de destruir qualquer ideia de relação.

Em tempos de tantos sofrimentos, criados não só pela doença, mas por ideias cinzentas de ódio, não consigo deixar de ver aí uma metáfora política. É triste observar certas formas de dessolidarização “com o outro, todo outro”, como você diz. A incapacidade de pensar no espaço coletivo, a incapacidade de conviver e agradecer, são coisas muito graves.

Não vejo a poesia como uma solução. Para certas coisas que acontecem hoje, deveria servir a lei e sobretudo a (não por acaso, tão castigada) educação. Mas também não vejo a poesia como uma forma individual de abstinência, de fuga, de sobrevivência pessoal. A poesia é um espaço de coabitação (“respeito e delicadeza”, nas suas palavras), por mínimo que seja. É uma potência de reciprocidade. Um exercício do olhar que ajuda a ver o outro como algo mais do que um estorvo a ser eliminado. É um modo de cultivar determinadas posturas que gostaríamos que se generalizassem, que se tornassem espontâneas.

Claro que a poesia também mostra o desequilíbrio, a injustiça, a enorme tristeza das mínimas violências, a tarefa infindável da civilização. Mas uma coisa não exclui a outra. Se o equilíbrio é impossível, também é verdade que a impossibilidade nos move. Você diz que é “mulher de fé”, acredita que as coisas podem melhorar. É importante acreditar nas coisas, nesse sentido da disposição de seguir, de ir em frente. Escrever é uma forma de seguir, de não estagnar, de buscar o que nos falta, uma forma de vida.

Com o abraço amigo de

Marcos

P.S.

ESCRITO À MÃO

Ela me destinava aos misteres da burocracia. Mas, deve-se dizer, nunca o fez de maneira eficiente. Sua cor, de um branco retinto, lustroso, inimaginável para uma época de tanta poeira, me distraía enormemente. Não me lembro do seu nome. Era figura do que se poderia chamar de um puro objeto, um abismo para o olhar. Além disso, a própria tipografia tinha um estranho padrão de letra manuscrita. Substituição e morte do trabalho da mão. (Meu pai tinha estudado a caligrafia. O ornamento da letra carregava um orgulho da técnica. Como substituí-lo?) A máquina de escrever era um robô, uma prótese de mão, substituta; talvez culposa, não fossem os exercícios instrumentais, mas que logo se perdiam em devaneios gráficos e concretos, morfológicos, fetichizantes. Pode-se dizer que um dos caminhos da poesia é a singularidade manuscrita, a rejeição da máquina, sua proximidade com o desenho. Sim, o trabalho do corpo. Mas a pura singularidade da escritura da mão é improvável: ela também se baseia em códigos linguísticos, gráficos, estilísticos, grafológicos. A caligrafia e o desenho frequentam inclusive livros de poetas, reproduzidos em larga escala. Por outro lado, como pensar a poesia a partir da máquina? O que pode haver de comum entre um poema e um ofício (em três vias, com papel carbono) é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode dizê-lo. O poema dramatiza a tensão entre singularidade e reiteração no trabalho da mão. Gostaria de dar a isso o nome de dactilo-grafia, escrita de dedos. A pulsão do gesto convertendo-se em inscrição anônima, mas com a marca da mão, com a tipografia da mão. O coração na mão. Pela máquina, o poema submetido à dor ou à alegria da própria mão. O poema é um ganho simbólico obtido pela fábula da perda, ou uma perda simbólica imposta pela fábula do ganho? O poema transita. Não é o contrário, é contrariante. Abandonei a primeira máquina, encontrei outras mais poderosas. Os dedos buscaram a abstração, se traduziram em dígitos. Mas a abstração logo descobriu-se virtualidade. Às vezes, dá pau.

do livro O roubo do silêncio (2006)

Imagem: Marcos Siscar

Carta 58 – De Samuel de Monteiro para Mariana Paiva

em resposta à Carta 46.

Campinas, dia duzentos e trinta e cinco, do período da quarentena, do ano dois mil e vinte, depois de Cristo.

Queria Mariana!

Quanta potência, mulher! Quanta potência! Alegrei-me demais com sua carta. Encheu-me de esperança e alegria. A sensação de ver uma letra manuscrita numa folha de papel dá um quê danado de pertencimento, de humanidade. As palavras bem dispostas no papel aquecem a alma. Então, primeiramente, gratidão, minha amiga. Gratidão!

Nós, que somos poetas, veneramos as palavras e a escrita. Eu ainda escrevo muitos dos meus cordéis em cadernos. O desenho das letras é muito útil para o burilamento interno, na busca da melhor rima, estrofe e sentido. Quantas histórias mudaram de rumo entre o pensamento e o desenrolar da escrita!

Queria que soubesse que senti muito ao saber da partida de sua avó. Uso a palavra partida e não morte, porque creio firmemente que a vida continua e ela deve estar com a mesma “vivacidade”, agora em outras paragens. A partida das pessoas que amamos tem um papel importante de libertação. Falamos muito “meu” isso, “minha” aquilo. Falamos pouco “nosso”. No fundo, a minha avó, que partiu há um tempo, e a sua, que partiu há pouco, não eram apenas nossas. Eram do universo. De tantas “gentes”. Ela está bem. Acredite!

Desejo que sua saudade se transforme em vida e inspiração. Que aquela mulher, que partiu, permaneça em você, minha amiga. Celebremos a ancestralidade. Seja ela distante ou mais próxima. A palavra carece muito de saberes antigos.

Lembro quando meu avô partiu, no ano de 1982, eu era ainda menino. Doze anos. A notícia chegou sem preparação alguma. Voltávamos da igreja, num domingo ensolarado, eu e meu tio caçula. Éramos quase irmãos, de tão pouca que era a diferença de idade entre nós. Eu o neto mais velho. Ele o filho mais novo. Estrada de chão batido, a gente se divertia naquele caminho e sempre demorávamos mais que uma hora para cobrir aquela légua dominical. No meio do caminho, um outro tio vem correndo esbaforido em nossa direção. Estranhamos. Estranhei. Ele mal chega e despeja, olhando para o irmão:

Vaninho! O pai morreu! O pai morreu!

Eu ouvi. O pai deles havia morrido. Meu avô também. O mais incrível é que, até hoje, não lembro de nada, entre o recebimento dessa notícia e a visão do corpo do meu avô inerte, no meio da nossa sala. Antigamente, também se partia em casa. Os entes queridos eram reverenciados uma última vez, naquele canto, que já foi lar. Meu avô era um grande contador de histórias. Alguns dos meus cordéis são lembranças destes relatos. Olha a ancestralidade mais uma vez presente.

Você acredita que sempre converso com o meu avô, troco ideias aqui, quando escrevo algum cordel baseado nas histórias que ele contava. Pergunto: “Vô, como era mesmo esta parte? Posso dar uma enfeitada aqui? Gostou desta parte?” Sinto que ele concorda e aprova. Ah! Seu Zé “Quintanhas”. Saudade danada dele! Sempre na cadeira de balanço. Por causa dele, meu canal se chama “Cadeira Poética”. Faço questão de gravar meus cordéis numa cadeira de balanço. Afinal, declamar um cordel é uma grande contação de história. Rimada e cadenciada pela métrica.

Vou dividir contigo, baseado numa das histórias que ele mais contava pra gente, quando criança, um trecho do cordel “A Noiva Misteriosa” que fala sobre a redenção da alma de uma mulher atormentada, morta pelo marido, por causa da riqueza da família. O tal Lindolfo Barnabé, antes disso, havia dado cabo do pai da moça. Ela ficou vagando na terra, até que a justiça fosse feita. E quem foi o escolhido? Claro que o meu avô Zé Quintanhas, que em certo momento…

Seguia com sua égua
Num trote bem controlado
Quando sente em suas costas
Um bafo frio, gelado
Ao ver as mãos na cintura
Ficou todo arrepiado
Ao passar sob o angico
Começou a sensação
Será que em sua garupa
Montou uma assombração
Afinal, era comum
Naquele antigo sertão”

Mudando de assunto. No ano de 1991, eu escrevi alguns decassílabos e enviei juntamente com uma carta para meu pai, o repentista Asa Branca do Ceará, que vivia e vive lá na minha Monteiro, na Paraíba, e que tinha o seguinte mote “É no risco e rabisco da caneta, que a distância se encurta, em nossa mente”. Numa das estrofes, eu escrevi mais ou menos assim:

As lembranças mandei através dela
Nos poemas, também dela preciso
E sem ela, não tem texto conciso
Nem também haveria história bela
Sem romance, folheto e sem novela
Todo mundo seria reticente
Sem poder escrever o que se sente
E seria bem triste, esta faceta
É no risco e rabisco da caneta
Que a distância se encurta em nossa mente

Ah! Lembrei do seu “abismamento”! No sertão antigo, nascer onde se vive era algo bem recorrente e até normal. Os centros urbanos, em cidades pequenas, muitas vezes quedavam distantes da zona rural e num tempo em que “automóvel nem se sabia se era homem ou mulher” e que “quem era rico andava em burrico e quem era pobre andava a pé”, como já nos informavam os sábios Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, não teve outro jeito, senão nascer daquela forma. Que sorte a minha, não é mesmo?

Somos conterrâneos. O Nordeste nos une e aproxima. Não sei contigo é assim. Mas quando encontramos alguém das nossas bandas, dá uma alegria danada, não dá?

Tenho curiosidade para conhecer o recôncavo baiano. Muita! Quem sabe, após a pandemia isso não acontece, de fato! Muitos planos escritos para colocarmos em prática quando isso passar! Nossas cidades, realmente se parecem. Apesar de nossas escritas serem tão distintas, acredito que tenhamos algumas semelhanças. Quem sabe, não é mesmo?

Lembro de você querer saber um pouco do cordel que escrevo. Nossa! Tenho escrito muito! Sobre praticamente tudo que acontece e venho sentindo. Para mim, externar tudo isso, além de me aliviar, tenho a impressão de que ajuda outras pessoas também.

Foram tantos cordéis que eu até escrevi um que se chama “Assim que se faz cordel”. São décimas. Veja se esclarece um pouco mais sobre o tema?

Uma história bem contada
Em estrofes de primeira
Situação verdadeira
Ou outra coisa inventada
Depois que ela é registrada
Num padeço de papel
Será vendida a granel
Nas feiras ou numa venda
Explico, pra que me entenda
Assim que se faz cordel
Pode ser de assombração
Ou história de princesa
Cada estrofe, uma surpresa
Do herói ou do vilão
Pra garantir a emoção
Daquele ouvinte fiel
Caberá ao menestrel
Dar vida aos versos escritos
Nos folhetos mais bonitos
Assim que se faz cordel
A rima é muito importante
E a métrica também
Um roteiro que convém
Num tema bem relevante
Para seguir adiante
Disciplina de bedel
Não rime céu com quartel
Que é rima comparativa
Só com rima positiva
Assim que se faz cordel
Seis versos numa sextilha
Numa décima, dez pés
O poeta que através
De uma elegante setilha
Capricha na redondilha
Sobre a Torre de Babel
Ou sobre algum coronel
Que agiu com vilania
Tudo cabe na poesia
Assim que se faz cordel

Preciso confessar-lhe algo. Não a conhecia. Como pode isso? Não conhecer alguém com uma potência de atuação como a sua. De tantos projetos, de tantas inclusões. Uma mulher “super”? Adorei saber de suas ações em favor da inclusão feminina na literatura, leitura, cultura… Que vida dura! Mulher! Que missão tão pura! Tudo rimando assim! É preciso que mais mulheres sejam vistas. Afinal, protagonistas elas sempre foram, mesmo com a sociedade tentando escondê-las. Não tem como! Uma mulher vai lá e faz! Na hora que a coisa aperta mesmo, em casa, na família, na vila, na comunidade, no bairro, em qualquer lugar que ela esteja. Na hora que ninguém e nem nada resolve, a mulher resolve. Porque é de sua natureza. O feminino entende de vida mais do que qualquer outro.

Tem um poema seu que li outro dia e que tem muito a ver com este momento. “Closing time”. Na minha leitura, fala muito deste “tempo dormido” e, vamos combinar, precisaremos mesmo “acordar super” e sorrir por cima dos dias frios. Seguimos firmes, caminhando nos telhados de nossas solidões.

É preciso sim, “ter peito de ferro para o acaso de um dia novo, sem fórmulas, voltar aos farrapos de um céu já sem sol, os olhos fundos de histórias” e que finalmente possamos “largar a armadura, num canto da sala”. Com sorte, conseguiremos dormir e, finalmente, “acordar super”!

Eu penso muito no sentido do poema. Para mim ele tem muito mais a ver com o aquilo que o leitor sente e percebe do que com aquilo que o poeta ou a poetisa quis dizer com a palavra. Por natureza, o poema, para existir, precisa de alguém, para dar o sentido que lhe aprouver. Antes disso, são palavras num pedaço de papel apenas, arranjadas e guardadas num canto qualquer.

Na minha gaveta

Na minha gaveta
Eu encontrei
minhas meias palavras
             Uma peça antiga de um poema
             Em pedaços
Na minha gaveta
Eu encontrei
Sonhos esquecidos
Amores empoeirados
Paixões com cheiro de naftalina
            Na minha gaveta
           Havia um pouco de tudo
E por pouco não me perdi
Naquela gaveta!

Preciso externar que gostei muito de Jéssica, sua amiga. Ela está certa. Silêncios duros entre pessoas que se amam não é legal. Fiquei um tanto com inveja do seu jardim! Ah! Um jardim é tudo de bom. Moro em apartamento. Não temos jardim. Temos paredes. Temos o pôr-do-sol, que contemplo sentado em minha cadeira de balanço. Ameniza um pouco este isolamento.

Dias melhores virão e tenho certeza de que você se sairá bem desta. Você é uma potência de mulher e em breve teremos a oportunidade de conversarmos mais. Quando o nosso sarau voltar, adoraria tê-la conosco, compartilhando poemas, saberes e experiências de vida.

Tomei a liberdade de fazer este soneto para sua avó. Veio a inspiração e coloquei no papel, neste momento. Chama-se, “Saberes da vida”:

Ah! Querida por que tu nos deixaste?
Nosso exemplo de amor e alegria
Que esta dor no meu peito, não devaste
Os saberes que em ti, sempre trazia
Ah! Querida por que tu não ficaste?
Mais um pouco! Só um pouco, eu pediria
Mas talvez, este pouco nem me baste
Pois amor pede amor e contagia
Se partiste, um pouco fui contigo
Outro tanto de ti, ficou comigo
E seguimos felizes! De verdade!
O teu colo, tantas vezes foi abrigo
Tu estás nas palavras que hoje digo
Nos saberes da ancestralidade

Fique em paz, minha amiga. Fique em paz!

Um abraço sertanejo!

Do cordelista Samuel de Monteiro, do Cariri Ocidental Paraibano, vivendo em Campinas.

Imagens: Samuel de Monteiro

Carta 57 – De Maria Teresa C. R. Moreira para Jeff Vasques

… em resposta à Carta 45.

Caríssimo, raríssimo Jeff!

Sim, poeta! O silêncio que selava sua carta ressoou claro e profundo aqui em meu todo ser, mais do que, suponho, lograrei expressar nessas linhas…! E foi bem!

E você, amigo? Como se encontra? Se encontra?!

“Será todo palhaço assim? “, eu sorria e me perguntava enquanto lia sua carta (não tenho muitos amigos palhaços…!), que foi me alvoroçando pensamento e olhar, retumbando no peito feito minha imagem num espelho que revela o que nem sabia em mim…! Trabalho do palhaço, trabalho do poeta….!!! Por isso digo, raríssimo Jeff, que é profunda alegria saber-lhe nessas paragens campineiras, enquanto aqui esteja!

Deixe-me contar uma pequena anedota, amigo! (Posso chamar-lhe assim?! Saiu-me tão natural…!)

Tenho lido e me deliciado com todas as cartas deste tão necessário projeto, do qual fazemos parte, “Cartas em torno da sobrevivência da Poesia – ou Poesia da sobrevivência”. Pois quando li sua Carta para Rodrigo, suas palavras ao mesmo tempo calaram e falaram em mim, despertando reflexões e encantamento, como chama que me queimava num desejo meio maluco de entrar em diálogo com o que lia, responder e/ou comentar algo que eu nem sabia exatamente o quê….! Pensei em lhe escrever de imediato, comentei com um amigo nossso em comum. Ele, com seu habitual jeitinho doce e ponderado, trouxe meus pés de volta ao chão lembrando-me que, provavelmente, haveria um tempo mais propício ao contato, deixar acontecer o tempo das cartas. Ufa! Aninhei meu arroubo no peito e aguardei, até que recebi sua carta e o fogo ardeu ainda mais pulsante…!! Sabe, Jeff, é sua poesia, rapaz….! Sua poesia, que irradia de cada frase sua, do seu olhar, da sua dor, da sua paixão, da sua luta… Sua poesia, que misteriosamente nos vê bem fundo, dentro, desnudando sentimentos, despertando pensamentos, revelando o mundo…! Sua poesia! E cá estou eu, poeta, sem nem saber direito o que dizer, mesmo depois de alguns vários ensaios…!

Poesia é assim
(Precisa ser!!!)
Percebe coração de Gente
-de Gente!!-
Entra
Se instala, faz morada
Agiganta olhar, eriça pele
Escancara amor e dor
Tira máscaras, lava maquiagens
Descortina Beleza e feiura
Desinstala, cutuca, acarinha
Deslimita, desengessa, desrotula
Compromete, cria laços e redes sem prender
Acolhe e lança -ao alto, ao fundo
Resgatando e construindo Humanidade
-Humanidade!!!!-
Revolucionando radicalmente
Fundamentalmente
Até que venham os frutos.
(Que não seja nunca instrumentalizada!!!)

Por tudo isso é que digo, poeta, que me arrepiaram várias imagens que você usou…! Como esta : “que os diques todos se rompam! O mundo todo inundado por novos olhares, sensibilidades, metáforas”…! Sim, amigo…é meu desejo…é o que almejo…!

Senti-me um pouco também esse dique, Jeff, que tão reverso de Mariana e Brumadinho, rompeu-se sim, em versos, levando consigo/comigo o imprescindível lastro ancestral, se/me espalhando contra-corrente, buscando e abrindo caminhos de vida e sororidade e fraternidade e humanidade, fugindo dos cabrestos comerciais, chegando a pessoas ressequidas de sede, inundando o mar pouco a pouco, persistentemente… Que se rompam os diques, meus, de muitas e muitos, de todos!!!

Falando em romper diques, que presentão foi para mim conhecer Gioconda Belli e entender a grandiosidade da referência que você fez…!! Que grande mulher, rompedora de diques! Sim, confesso descaradamente minha ignorância…eu não a conhecia…mas confesso também minha sede de aprender! Mergulhei nela, apresentei-a a outras mulheres, esbaldei-me em seus versos! Que premente essa necessidade de sabermos as vozes que já se levantaram, especialmente as mais próximas de nós e de nossa realidade sul-americana!!! Por isso, aplaudo vigorosamente a iniciativa das Edições Trunca! Conte com minha divulgação amorosa!! Sigam rompendo diques!!

Sabe, Jeff, quanto mais caminho nesta vida, mais profundamente entendo que somente chegaremos realmente a algum lugar se não caminharmos sós! Estou fazendo meu percurso literário assim, coletivamente, desde o princípio. Coisa linda e necessária, a caminhada coletiva…! Você me perguntou sobre o Mulherio das Letras, e sei intuitivamente que você irá gostar muito do que descobrirá! Por isso te mando, junto com esta carta, meu livro da Coleção l do Mulherio das Letras, para que descortine um pouco esse mulherio diante dos seus olhos! Caminhamos unidas, nos ajudando, colaborando, acompanhando-nos mutuamente, lendo-nos, ousando. O necessário isolamento social que vivemos devido à pandemia não desbaratou a comunicação e a entre-ajuda de quem sabe a necessidade ainda mais premente de darmo-nos as mãos e espalharmos o anti-vírus da poesia – usando a imagem que você me entregou em sua carta.

Mas é luta, amigo, claro que é! Isso não nos intimida, ao contrário! Vamos encontrando espaços e, criativa e tenazmente, vamos penetrando, levando outras vozes conosco!

Aqui em Campinas, encontrei um espaço de ajuda-mútua, o Portal do Poeta Brasileiro, que tem o intuito de valorizar e divulgar os poetas vivos. É um grupo nacional de escritores (com sede aqui na cidade) que incentiva e apoia projetos que encontrem essas brechas por onde se pode derramar poesia. Voluntariei-me no projeto Ondulações, não há muito tempo, mas já vejo o empenho e alguns frutos lindos da poesia chegando a mulheres do sistema penitenciário, a trabalhadores com deficiência visual, idosos em casas de repouso… um grão de areia, nesta realidade tão vilipendiada desta cidade, deste país, mas é nossa contribuição! Uso novamente sua imagem (insisto nelas pois acho que são eloquentes demais!!!): “sei que a poesia, esse pó nas engrenagens do mundo, pode pouco, mas miúdo assim passa pelas grades, pelos vãos, se infiltra nos pulmões, nos corações, nas consciências e vai agindo e ampliando a resistência…” Tão bem dito!!!

É verdade, Jeff, que somos poucos… porém, penso na poesia como
Poesia Fermento

Poesia é fermento
Leveda a massa
(Não é farinha
É fermento!)
Poesia faz crescer
Estatura do olhar
Poesia penetra
Insufla ar
Poesia não incha
Faz crescer
Poesia é vocação
Pra elevar o mundo!

Somos poucos mas vamos fermentando, imaginando, trabalhando…! E penso em outra imagem que você usou e que me impactou sobremaneira: “Imagine se cada um e cada uma pudesse usar da língua como ferramenta de assombro e investigação de si, do mundo? Como alma de fogo atirando contra ditaduras e dicionários? Ou como fogueira dos encontros, em que mulheres, donas de sua palavra, falariam de si para si e para todos?” Imagino, sim, amigo! Imagino e me emociono! Imagino e escrevo!

Mas me dói também, devo dizer, a desconexão que você apontou certamente… Essa des-conexão…de si, do outro, do mundo onde vivemos, do que vai além de nós mesmos… Dói e pre-ocupa, dói e me ocupa, dói e…escrevo! Escrevo porque espero, sim, que arte tenha o poder que creio, de nos resgatar, numa resistência tão diferente das feitas com armas que tiram a vida…”almas de fogo”! Escrevo e espalho, como posso, “puxando conversa”, falando sobre o não-dito, a começar pela menopausa…! Ah, como é necessária essa conversa, você bem intuiu…! E a poesia possibilita esse jeito de dizer que entra sem ferir, que diz sem forçar, que provoca identificação sem que se imponha…! E provoca encontros!! Encontro de mulheres que sentem que passam por isso sozinhas, e descobrem que somos tantas…! Encontro de mulheres que agora já não sofrem caladas, isoladas…! Encontro de mulheres que se re-criam juntas! É verdade, amigo, que toco uma ferida. Sei disso. O preconceito contra a mulher ainda é real, e é tão sofrido…e quando se junta, nesta fase da maturidade, a outros tantos pre-conceitos, nesta cultura do descartável, e somos vistas e tratadas como “peça usada e ultrapassada”, a situação torna-se quase insuportável para muitas de nós!

A minha, a nossa missão de poetas é um desafio que nos espicha muito a própria humanidade..! E isso é privilégio, eu sinto. Dolorido, mas privilégio!

Sofro
Porque sinto.
Prefiro esse estado!

Sigo, poeta, encontrando meios de provocar encontros, de espalhar sementes. Carrego essa urgência!

Quero ser voz
Das que acham que tem
Mas a perderam
Arrancada que lhes foi
Sem que de verdade
Entendessem…
Busco a minha
Que seja nossa
De cada uma!

E assim, amigo-poeta, nessa luta e nessa busca, vamos você e eu , e que bom e feliz que nos cruzamos! Agora, que nos lemos, levo em mim marca sua. Nunca mais serei a mesma. Espero deixar algo também em você – quem sabe, também, no Magrolhos….!!

Agradeço infinitamente sua nunca desistência!

Transbordadamente,

Maria Teresa!

Imagens: Maria Teresa C. R. Moreira

Carta 56 – De Mariana Paiva para Marcos Siscar

… em resposta à Carta 44.

Campinas, em novembro
desse ano de saudades,

Marquinhos,

Cinco anos. Quando eu cheguei aqui, você foi uma das primeiras pessoas que eu quis conhecer. Chovia e você tinha acabado de dar aula, sentamos e trocamos nossos livros. Você me falou de como eu ia adorar sua família e eu te falei de meu avô e de como ele gostava de cinema. Em pouco tempo você me entregou portas abertas, Margarida e Pedro, tudo para ser meu também. Receber sua carta me abraçou. Porque nela tem também todos os dias de sol de casa cheia, o colorido das comidas, o som das músicas, os versos dos poemas, as coisas todas que fazem de nossa amizade a nossa amizade.

Seus livros que já estavam nas estantes aqui bem antes de a gente se conhecer. Mas quando você se fez presente mudou tudo. Estante que vira parede. Lembra quando eu cobri um pedaço do quintal daqui de casa com versos que eu amava? A chuva aos poucos foi despedaçando os papéis e tudo bem, porque poesia há de ser fugaz assim como um ventinho. Ou uma chuva. Em meio às palavras de Hilda, Adélia, Fernando Pessoa, as suas estavam. Talvez até com mais propriedade que as outras, porque o poeta, por sua própria existência cotidiana, pode fazer poesia. Você ensina isso sem dizer palavra, que é de seu jeito, as músicas emendadas uma na outra e todo mundo dançando. Não me lembro de não ter sido feliz perto de você. Se isso não é poesia, meu amigo, eu não sei de mais nada

O que podem os braços abertos? Os sábados que viram domingos, a luz refletindo cenas de um filme bom. Podem muito os braços abertos. Os seus eu tive sempre, então eu fico meio sem jeito de assumir aqui que falar de sua poesia é falar de você. Com todos os diálogos com a tradição que os versos trazem consigo, com um certo Mallarmé à espreita, os versos pra mim são o poeta. Porque poesia abre portas de palavras: não são elas tão tão essenciais pra dizer desse silêncio que mora dentro?

Em seu/meu poema preferido que você fez (é meu porque eu levo ele comigo), tudo começa e termina em coragem:

“não se esqueça de onde veio
nem para onde os ventos o carregam
apenas sinta que seus pés se despregaram do chão
se quiser poderá pisar novamente
deitar raízes pela planta dos pés
transformar-se em pedra tronco lenhador
mas embotará para sempre a clareza do voo (...)”

Assim eu aprendo a seguir, e confesso que às vezes me pego desastrada sonhando raízes mas, por sorte, não dura muito. A estrada e o voo futuro se levantam de repente e eu fico muito muito pequena, e é bom, porque o que pulsa nunca está naquele mesmo lugar, que é tudo feito de mudança e de tempo, de vento que passa chamando liberdade e a gente com vontade de ir. Aliás, é na clareza do voo que essa carta existe: o encontro que se dá pelo movimento; tanta coisa fora do lugar que inaugura tudo novo. O vento que carrega.

Mas a saudade já vai longe, pedindo uma moqueca, um encontro num dia de sol, uma prainha. Ainda bem que nem tem feito muito sol que a gente pensa menos nisso. É preciso ser humilde e aprender o ritmo do vento. Falar devagar e baixinho, como numa prece cheia de paciência de quem tem certeza. Um salto de fé. Não me custa tentar, imaginando um galho de arruda a balançar no ar: vento carregue as más notícias para longe e meus queridos logo logo pra perto de mim

um abraço à espera de novos voos,

Mari

Imagem: Mariana Paiva

Carta 55 – De Adriana Zapparoli para Samuel de Monteiro

em resposta à Carta 43.

Campinas-burguesa-indecisa, 11 de 2020, até quando?

Caro Samuel,

Agradeço a carta-poesia tão doce e fraterna. É sempre bom ter momentos de criação em torno da arte ou de qualquer manifestação artística.

Tenho passado momentos alegres por esses dias. Apesar dos dias de Sol. Você entendeu tudo. Eu amo a chuva. O cheiro da chuva na terra. O cheiro dos pingos de vento de chuva gotas no pescoço. Mas que nunca esses pingos toquem os meus pés, sobretudo os meus pés. Existe isso aqui. Estive olhando as imagens e acredito que você fica bem usando chapéu… quem sabe uma capa de chuva.

Hoje eu me levantei cedo. E cuidei de coisas desimportantes. Preciso tirar o pó dos móveis, da estante. Meus livros. Tenho apenas aqueles favoritos. Acabo doando meus livros. Não acredito que livros devam permanecer em estantes. Eles devem circular. Tenho um certo carinho por livros eletrônicos.

Agradeço as plaquetes em cordel, a beleza estampada naquilo tudo. Gostei muito e respondo todas as suas questões internamente… Não sei bem o que dizer, porque estou sentindo as belezas cordelistas… Diga-me o motivo que as mulheres cordelistas são guerreiras, são?

Estamos em momento eleitoral. E fico pensando na falta de água no Brasil. Do mutirão ouro verde, na terra de dandaras e zumbis e na misteriosa noiva do cordel. As manifestações são caminhos enviesados, por isso não toque em nada de imediato as crianças sempre acordam assustadas, naquelas salas negras, onde o verso ultrapassa o limite.

... e as bruxas impressas em azulejos de unhas compridas
usam filo solar...

Nesses momentos saio de mim, e fico à espreita poética.

… [ … fragmentada ao córtex visual, a luz agora é indecisa (é ícone de esboço comprimindo o sulco calcarino) .. e enquanto o bem-te-vi assoalha o teto ébano, pica com o seu bico embriagado (ele – intervindo – sob o adro) a acústica de sua imagem de grande-kiskadi é contrária ao narcisismo… ]

Observo tudo, desde simples clipes, no chão. Papeis e canetas. Restos de alimentos, e percebo as máscaras jogadas no chão. A COVID permanece em estado de mutação.

Mas me conte sobre as suas produções, sobretudo aquelas que você menos acredita. Presumo que não acredite em todas, acredita?

… um estado nublado em ambiência pútrida. um estado de águia em sapiência oculta. olhar pelo lado com a ciência do buraco da fechadura. não encontrar o esgoto entre o escarro; não encontrar o oco da nascente do limbo nesse estágio em resquício desavisado. saltar da sacada e ver quase nada [….] abaixo, em dois homens rubros, em uma velha bengala, e em um pênis murcho que, entre o barulho dos carros e suas capotas vermelhas, olham a megera… : em autodefesa.

Espero que tudo se refaça e em breve voltemos a nos expressar de uma outra forma. Aproveitei o momento para alinhar essas ideias em colcha de retalhos, para lhe enviar e pensar na realidade que lhe consome diariamente por lutas e caminhos nas campinas. Samuel, sabe, eu tenho medo de boneca de louça.

Um abraço, querido.

Adriana Zapparoli.

Imagem: Adriana Zapparoli