… em resposta à Carta 48.
Tua botânica gramática, essa grama errática por entre teus silêncios, caligramas, essa tua erótica ciência aflorada, incandescências… e esse pólen todo ao abrir a carta, Hydnoras alienígenas no subterrâneo das palavras, larvas na funda lavra de sua sonora poesia. Já minhas palavras são menos exatas, Adriana, mas, espero, te entreguem algo dessas minhas samambaias cotidianas, esse verde na varanda… palavras como formiguinhas que despejo num canto para lhes ver o caminho e lhes pôr o dedo no meio e ver, então, que outro caminho tomam. Por mais que se percam, mintam, deem giros e voltas sempre retomam sua carreira – humilde – rumo ao escuro do chão. Que elas te guiem na escuridão.
Querida Adriana, no encarte que me enviaste embrulhando toda tua mensagem, me pergunta o que penso da poesia experimental… e mesmo que não me fizesse tal pergunta, diante da tua obra essa pergunta nasceria. Tua poesia nos encara inquisidora, nos obriga a rever e desver a linguagem… é preciso habitar as profundezas de sua escritura por algum tempo até começar a ver, aos poucos, no escuro, silhuetas… quiçá, bioluminescências… eu acho a poesia experimental fundamental, por mais que envolva riscos…
Gosto de pensar na metáfora que Maiakovski criou sobre os diferentes papeis de diferentes poesias. Ele acreditava que, sim, o poeta, como a energia elétrica, deveria chegar a cada uma das pequenas casas espalhadas por todo o território e iluminar esses espaços individualmente, comunicar-se com seus moradores, com suas questões de forma a lhes tocar o coração, a mente, a imaginação… a poesia, portanto, é preciso se fazer popular… mas ele entendia, também, a importância das centrais de energia, de maior voltagem, tensão, que alimentavam, não as casas diretamente, mas nutriam outras subestações, menores, intermediárias, que, por sua vez, levariam energia às casas. Penso que a poesia experimental, os poetas experimentais (ou, ainda, as fases experimentais dos poetas) ocupam esse papel de acumuladores de alta voltagem, que alimentam outros tantos poetas (ou mesmo leitores que comportem tal eletricidade). É a experimentação que nos alarga os horizontes da comunicabilidade, mesmo que num primeiro momento tornem a comunicação mais difícil, complexa.
Penso, por exemplo, no concretismo, com sua alta carga explosiva de experimentação plástica, visual, com as palavras e versos compondo com o espaço branco da folha, e que permitiu, posteriormente, que toda uma nova geração de poetas se apropriasse de elementos dessa “escola”, ainda que não a seguissem, ainda que não fizessem, stricto sensu, poesia concreta. De certa forma, o que antes foi experimentação, agora é legado que grande maioria dos poetas carrega, como neste meu poema:
tempoaotempo
sigo virando esta areia fi na sobre teu no me a t é que setor neapen asesomen teapenasnome
O risco, a meu ver, da poesia experimental é o de se romper a comunicação. Esse dilema também aparece em outras artes: entre a comunicabilidade (que permite que essa arte dialogue com mais gente) e as inovações formais (que permitam externar da melhor forma o estilo/impulso próprio do artista). Quando a comunicação se rompe, o artista se perde dentro de seu emaranhado de maravilhas sígnicas, e o mundo segue incólume. No outro oposto, quando a comunicação se torna o foco excessivo, estamos beirando o discurso cotidiano, prosaico, e assim, sem estranhamentos, sem as “pedras” no meio dos feijões, na metáfora de João Cabral, como iscar o assombro, a poesia? São riscos que correm os poetas… no papel e na vida… (já peço desculpas, Adriana, por discorrer assim tanto sobre esse assunto, é porque me toca e penso muito sobre!)
Sua poesia certamente é dessas de alta voltagem, que não chega facilmente aos leitores, por mais que a sonoridade encante logo de cara a qualquer um (e como é bom resgatar a força e beleza dos sons de nossa fala, seu assombro, palavras mágicas, feitiços… você faz isso com maestria!). Teu trabalho é artesania, pedra bruta lapidada em mil faces, miríade.
Eu vivi períodos de maior experimentação, da vivência da palavra como pele, como corpo e me deixando levar por seus ritmos, sons, por sua corporalidade e também incorporando os jogos espaciais, com a fragmentação do dito, da palavra no branco da página. Muitas vezes, inclusive, sinto que me falta vivenciar mais desses caminhos em que a palavra me guia sem bússolas. Era essa poética que defendia neste poema de muitos anos atrás:
Poética
Poesia se faz de olvido
do sono que a língua traga
solve no palato a palavra
e na ponta do lapso...
a guarda.
Mas, já há algum tempo, por movimentos próprios da vida coletiva, tenho me esforçado no sentido de conquistar maior comunicabilidade, levado que sou, cada vez mais, por uma urgência de que a palavra aja no mundo, o transforme… e as experimentações seguem, mas jogando com outras estruturas, por exemplo, em poemas em que tento “romper a página” no diálogo direto com o leitor; outros em que versejo notícias de jornal, documentos oficiais, fazendo do cotidiano o espanto; ou revelando as próprias estruturas do poema, o que não está à vista, desfetichizando a escritura, ou, ainda, na construção de poemas “performáticos”, moldes de poemas a serem preenchidos por qualquer um, e, também, poemas-pixo, como dizem, feitos para circular em muros, paredes, camisetas, como neste curtinho: “Quem TRANS forma / o CIS tema / faz o meu gênero”. Nessa busca da palavra-ação, do agir a poesia, cheguei mesmo às raias de negar a escrita e, como Rimbaud, beiro, muitas vezes, o abandono da palavra, nesse anseio de fazer da vida, do mundo, a verdadeira poesia:
abandona as palavras que dizem nada com nada faz das mãos sua boca só diz coisa com coisa
…mas a palavra sempre volta, Adriana, sempre me acolhe, ela me é necessária e duvido que a abandone definitivamente, por mais que a palhaçaria venha tomando cada vez mais espaço e tempo.
Sobre o amor, querida poeta, piso com delicadeza nesse terreno. São terras férteis, mas também movediças. Como você, Adriana, já soube bem desse amor envolto em escuros que você mencionou em sua carta, já sofri muito… não é fácil abraçar e se vincular sabendo da perda, da morte inevitável… esta sociedade nos fragmentou e isolou (não só o corona) e é difícil juntar os cacos, que colados, estranhos, nos espiam do aparador, como ironizava Drummond… amor e dor, as rimas mais esdrúxulas da poesia mundial… mas, igualmente, as mais inegáveis.
“um corpo dentro do outro se desfazendo. a digestão longa de tuas mãos, esse bolo de desejo-morto descendo os intestinos, a decomposição maciça de tudo que foi encontro, caminho.
(…)
mastigo o que era carne, mastigo, mastigo o sonho até o pó; te mastigo a boca, o amargo, o nó, uma a uma as letras de teu nome, mastigo todo o púrpura das horas, tuas unhas às costas, tua dor inatingível de carinho, tua vulva… mastigo até deixar só a textura de teu rastro escuro na língua. te desamo até os gânglios, até os ossos. desbrilho teus olhos no descer necessário dos esôfagos. te obrigo a ser em mim o oco. meu nada e meu tudo. osso.
aguardo na dor lenta dos peristálticos movimentos a deglutição perfeita de teu miolo ainda vivo de ausência.”
Mas o tempo passou e fui aprendendo, ou melhor, desaprendendo os modelos do amor. Hoje, brinco, busco nas relações afetivas a “redução de danos”, caminhos que façam dele menos posse, neuroses, violências… são caminhos de amor “livre”, difíceis, igualmente, mas creio que de maior abertura, companheirismo, como digo no fecho do poema “Ímpares”:
Não,
juntos
não somos um,
nem somos feitos
um para o outro...
mas ninguém negará
que unidos
somos muito
- mas, muito! -
mais soltos.
Querida Adriana, espero que ainda possa, passada a pandemia, conhecer meu Magrólhos, meu palhacin, meu melhor de mim, e que ele possa te reconectar com as memórias boas de família e circo. Espero também que possamos conversar com calma, tantas histórias! – sobre minhas viagens de kombi (e sobre como viajar te move!). E te dizer o quanto Cortázar – que amamos! – caminhou comigo (ele que também fez uma viagem de kombi com sua amada, Carol, pela França). E que até lá você possa perceber sua poesia como tuas palavras de força, palavras-feitiço, que podem suspender um tanto da angústia, suspender um tanto da morte (me suspenderam, aqui, na beleza enigmática de seu feitiço sonoro). Sei da dificuldade da poesia se fazer corpo agora… comigo o mesmo se passa… mas torço pra que sua flora fantástica, seus animais maravilhosos e sua imaginação sensual e poderosa possam se fazer palavras em sua boca e mãos. Feliz de conhecer um pouco mais de ti e de uma trajetória poética tão rara!
Abraço carinhoso,
Jeff
… chuvas de novembro de 2020
P.S.: Agradeço os lindos plaquete poético e o cartão que me mandou! Mando também cartões postais poéticos que vendia em minha viagem de kombi pela América. Espero que iluminem teu olhar!