… em resposta à Carta 11.
Segundo dia mais frio do ano de 2020.
César,
Você me chamou de desastrada e eu adorei. É o que eu sou. Uma vergonha (Hahahaha). Se eu te contar todas as vergonhas que eu já passei, você até chora: de dó ou de dar risadas.
Distraída que sou, outro dia, esbarrei na barraquinha de laranjas do moço e várias laranjas saíram rolando pelo terminal central. Depois disso, sempre quando eu passo ali, ele me olha com cara feia. Acho que ele não gosta muito de mim.
Eu tropeço nas pessoas. Esbarro na moça no restaurante e derrubo o suco dela no chão. Eu derrubo o meu suco e sempre bato o dedinho do pé na quina da mesa. Eu falo alto. Eu dou risada alta e eu falo muito. Eu tenho problemas em guardar fisionomias e eu confundo os nomes das pessoas. Eu tinha uma amiga que o pai dela era a cara do Maurício de Souza, pronto, foi o suficiente para eu passar a vida toda chamando o homem de Maurício. Tanto é que eu nem lembro mais qual é o nome verdadeiro dele! Sou praticamente um perigo para a sociedade. Penso que a sociedade está um pouco mais segura agora que tenho passado boa parte do tempo dentro de casa.
Na sua carta você fala sobre o retorno da natureza para nós. E eu concordo contigo, César. Não soubemos cuidar. Anos e anos achamos que podíamos fazer da natureza o que bem entendêssemos que ela, como uma mãe boazinha, aceitaria tudo quietinha. Mas não foi o que aconteceu. Ela continua sendo boa mãe, mas é justa. E tem cobrado com mãos de ferro todo o estrago que lhe fizemos. Amar a natureza é respeitar.
Lembro da minha bisa, quando eu era criança, e estava chovendo forte (trovões e relâmpagos), e se eu fizesse barulho, a bisa me dava um psiu e dizia: “Respeita a chuva, menina!” E eu ficava quietinha ouvindo todo o plicplic, chuááááá e cabruuuum lá fora. Sempre lembro desse pito da bisa que me deixou há mais de 20 anos.
Fiquei por um bom tempo refletindo sobre isso que você me escreveu: “Acho que se as pessoas reparassem na poesia da vida, não precisariam de tudo o que é o último modelo, de última geração, sempre mais… mais… mais, tudo mega… para preencherem esse imenso vazio que abriram em si, porque idealizam que a felicidade está em algo grandioso, e sabemos que não é isso.” E eu concordo tanto contigo, César. Tanto. E me lembrei de um garotinho que conversava com a mãe no ônibus lá pelos idos de 2016. Ele
disse para ela, depois de ter visto um lindo ipê ali perto da Avenida Brasil:
– Mãe, que árvore é essa mesmo?
– Eu acho que é um ipê, filho.
– Em Paris tem ipê, mãe?
– Eu não sei. Mas eu acho que não. Eu acho que o ipê é uma árvore brasileira.
– Mãe, a professora da gente pode mentir?
– Pode, filho. Mas na verdade ninguém deveria mentir, mas às vezes…
– A professora mentiu então. Ela disse que todas as coisas mais bonitas do mundo estão em Paris. Mas em Paris não tem ipê.
Olha isso. Ele tem desde pequeno aprendido admirar as belezas da vida. Não sou mãe, César. Mas sou tia de dois sobrinhos que para mim são os meninos mais bonitos do mundo. E eu decidi ser para eles a portadora das boas notícias. E ajudá-los a ver a beleza que há no mundo. Vou te mostrar a poesia que fiz para Pedro, no dia em ele nasceu:
“Pedro chega hoje.
Em uma semana quente de verão e chuvas no final de tarde. Dias em que eu sempre esqueço o guarda-chuva. Tomara que Pedro não se importe com isso.
Pedro chega hoje.
Ficarei o dia todo pensando nele. Penso nele todos os dias. Desde o dia que eu soube que ele viria.
Pedro chega hoje.
E vai chover, Pedro. Disse no rádio. Vou te ensinar a gostar de chuva e a acreditar na moça do tempo. Se ela disser que vai chover, leve o guarda-chuva, Pedro! Mas se não quiser, delicie-se com a chuva.
Pedro chega hoje.
Em uma época de quaresmeiras e flores amarelas colorindo a cidade. Vou te ensinar a gostar de flores, Pedro. E dos passarinhos. Dos ipês. E do amanhecer.
Pedro chega hoje.
Chegue logo, menino Pedro! Tua mãe no hospital sente as dores da tua chegada.
Pedro, tu que está mais perto de Deus do que eu, diga à Ele que agradecemos tua chegada.
Pedro, tua família te espera.
Chegue logo, Pedro!
O telefone tocou, Pedro, tu está chegando. As pessoas me olham no ponto de ônibus porque eu choro, Pedro! Sou chorona, menino, acostume-se com isso.
Hoje eu choro o dia todo, menino! O dia todo!
Venha em paz, meu querido!
Venha em paz.”
Espero que Pedro e Gabriel nunca esqueçam das belezas da vida. Da poesia que há na vida. De admirar aquilo que o dinheiro não pode comprar. Somos ricos daquilo que o dinheiro não compra.
Já volto, César.
…
Está muito frio. Precisei sair na rua e pensei que eu fosse congelar. Faz tempo que as estações andam bagunçadas. Agosto não é tempo de frio como esse. Agosto é tempo de vento. Até faz frio, mas não como hoje. Mas está tudo muito estranho. Tão estranho que até agosto está passando rápido.
Ouvi jazz no ônibus enquanto eu voltava para casa e via o trânsito seguir lento. Pensei que fosse por causa do horário, mas o motorista disse que tinha acontecido um acidente lá na frente. E fiz uma prece no meu coração para que não fosse nada grave. Que o dia de mais ninguém ficasse triste com a notícia de uma perda. Torci para que fosse um dia de reencontros. Já estamos há tanto tempo sem encontros e reencontros, que parece que essa pandemia tem nos trazido só desencontros. Eu gosto quando a vida nos proporciona encontros. Tem dias que a vida acorda de bom humor e nos prega boas peças. Gosto disso. Gosto das surpresas que a vida prega. As boas, claro. Como o telefonema de alguém querido no meio de uma noite chata de terça-feira: “estou perto de você. Vou aí te ver.” Ou um abraço apertado na hora do coração apertado. Aliás, abraço apertado é o único aperto gostoso da vida! Sinto falta disso…
Mas na volta para casa, vi uma cena bonita que me emocionou. Chorei sem vergonha de esconder as lágrimas. Bem ali, na Avenida João Jorge, um moço na cadeira de rodas deu sinal para o ônibus. O motorista desceu para ajudá-lo a subir, mas não conseguiu porque a escada para cadeirantes travou. O motorista disse para o moço que ele teria que esperar o próximo ônibus e voltou para dentro. Um moço sentado depois da catraca quis saber por que é que o moço da cadeira de rodas não tinha entrado. Assim que o motorista explicou, o moço disse:
– Não vamos deixar ele não. Quem me ajuda a pegar o rapaz?
Três homens e uma mulher se levantaram, entre eles, um senhor muito idoso, e o motorista. Os homens ergueram o moço na cadeira de rodas e o colocaram dentro do ônibus. A mulher ajudou a colocar o cinto.
O ônibus seguiu o caminho. E nós que vimos a cena seguimos acreditando no poder da gentileza. Mesmo nesses dias de distanciamento, a gentileza aproxima.
Essas coisas, sabe, César… Fazem a vida valer à pena.
Olha, eu aceito, sim, o seu convite para o almoço. Quero muito ouvir você contar suas aventuras como escritor e conversarmos sobre miudezas da vida. As miudezas que nos agigantam a alma. E tudo o que tem comida, letras e conversas, eu amo. Se a lagartixa que mora no meu quarto e não paga o aluguel estiver por aqui, posso levá-la também? Mas já aviso que ela é hiperativa e curiosa. Pergunta tudo, mexe em tudo, não para quieta e fala
mais do que eu.
Me despeço aqui aguardando ansiosamente o fim da pandemia para uma tarde de conversas.
Abraços, meu amigo.
Daíse