Carta 58 – De Samuel de Monteiro para Mariana Paiva

em resposta à Carta 46.

Campinas, dia duzentos e trinta e cinco, do período da quarentena, do ano dois mil e vinte, depois de Cristo.

Queria Mariana!

Quanta potência, mulher! Quanta potência! Alegrei-me demais com sua carta. Encheu-me de esperança e alegria. A sensação de ver uma letra manuscrita numa folha de papel dá um quê danado de pertencimento, de humanidade. As palavras bem dispostas no papel aquecem a alma. Então, primeiramente, gratidão, minha amiga. Gratidão!

Nós, que somos poetas, veneramos as palavras e a escrita. Eu ainda escrevo muitos dos meus cordéis em cadernos. O desenho das letras é muito útil para o burilamento interno, na busca da melhor rima, estrofe e sentido. Quantas histórias mudaram de rumo entre o pensamento e o desenrolar da escrita!

Queria que soubesse que senti muito ao saber da partida de sua avó. Uso a palavra partida e não morte, porque creio firmemente que a vida continua e ela deve estar com a mesma “vivacidade”, agora em outras paragens. A partida das pessoas que amamos tem um papel importante de libertação. Falamos muito “meu” isso, “minha” aquilo. Falamos pouco “nosso”. No fundo, a minha avó, que partiu há um tempo, e a sua, que partiu há pouco, não eram apenas nossas. Eram do universo. De tantas “gentes”. Ela está bem. Acredite!

Desejo que sua saudade se transforme em vida e inspiração. Que aquela mulher, que partiu, permaneça em você, minha amiga. Celebremos a ancestralidade. Seja ela distante ou mais próxima. A palavra carece muito de saberes antigos.

Lembro quando meu avô partiu, no ano de 1982, eu era ainda menino. Doze anos. A notícia chegou sem preparação alguma. Voltávamos da igreja, num domingo ensolarado, eu e meu tio caçula. Éramos quase irmãos, de tão pouca que era a diferença de idade entre nós. Eu o neto mais velho. Ele o filho mais novo. Estrada de chão batido, a gente se divertia naquele caminho e sempre demorávamos mais que uma hora para cobrir aquela légua dominical. No meio do caminho, um outro tio vem correndo esbaforido em nossa direção. Estranhamos. Estranhei. Ele mal chega e despeja, olhando para o irmão:

Vaninho! O pai morreu! O pai morreu!

Eu ouvi. O pai deles havia morrido. Meu avô também. O mais incrível é que, até hoje, não lembro de nada, entre o recebimento dessa notícia e a visão do corpo do meu avô inerte, no meio da nossa sala. Antigamente, também se partia em casa. Os entes queridos eram reverenciados uma última vez, naquele canto, que já foi lar. Meu avô era um grande contador de histórias. Alguns dos meus cordéis são lembranças destes relatos. Olha a ancestralidade mais uma vez presente.

Você acredita que sempre converso com o meu avô, troco ideias aqui, quando escrevo algum cordel baseado nas histórias que ele contava. Pergunto: “Vô, como era mesmo esta parte? Posso dar uma enfeitada aqui? Gostou desta parte?” Sinto que ele concorda e aprova. Ah! Seu Zé “Quintanhas”. Saudade danada dele! Sempre na cadeira de balanço. Por causa dele, meu canal se chama “Cadeira Poética”. Faço questão de gravar meus cordéis numa cadeira de balanço. Afinal, declamar um cordel é uma grande contação de história. Rimada e cadenciada pela métrica.

Vou dividir contigo, baseado numa das histórias que ele mais contava pra gente, quando criança, um trecho do cordel “A Noiva Misteriosa” que fala sobre a redenção da alma de uma mulher atormentada, morta pelo marido, por causa da riqueza da família. O tal Lindolfo Barnabé, antes disso, havia dado cabo do pai da moça. Ela ficou vagando na terra, até que a justiça fosse feita. E quem foi o escolhido? Claro que o meu avô Zé Quintanhas, que em certo momento…

Seguia com sua égua
Num trote bem controlado
Quando sente em suas costas
Um bafo frio, gelado
Ao ver as mãos na cintura
Ficou todo arrepiado
Ao passar sob o angico
Começou a sensação
Será que em sua garupa
Montou uma assombração
Afinal, era comum
Naquele antigo sertão”

Mudando de assunto. No ano de 1991, eu escrevi alguns decassílabos e enviei juntamente com uma carta para meu pai, o repentista Asa Branca do Ceará, que vivia e vive lá na minha Monteiro, na Paraíba, e que tinha o seguinte mote “É no risco e rabisco da caneta, que a distância se encurta, em nossa mente”. Numa das estrofes, eu escrevi mais ou menos assim:

As lembranças mandei através dela
Nos poemas, também dela preciso
E sem ela, não tem texto conciso
Nem também haveria história bela
Sem romance, folheto e sem novela
Todo mundo seria reticente
Sem poder escrever o que se sente
E seria bem triste, esta faceta
É no risco e rabisco da caneta
Que a distância se encurta em nossa mente

Ah! Lembrei do seu “abismamento”! No sertão antigo, nascer onde se vive era algo bem recorrente e até normal. Os centros urbanos, em cidades pequenas, muitas vezes quedavam distantes da zona rural e num tempo em que “automóvel nem se sabia se era homem ou mulher” e que “quem era rico andava em burrico e quem era pobre andava a pé”, como já nos informavam os sábios Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira, não teve outro jeito, senão nascer daquela forma. Que sorte a minha, não é mesmo?

Somos conterrâneos. O Nordeste nos une e aproxima. Não sei contigo é assim. Mas quando encontramos alguém das nossas bandas, dá uma alegria danada, não dá?

Tenho curiosidade para conhecer o recôncavo baiano. Muita! Quem sabe, após a pandemia isso não acontece, de fato! Muitos planos escritos para colocarmos em prática quando isso passar! Nossas cidades, realmente se parecem. Apesar de nossas escritas serem tão distintas, acredito que tenhamos algumas semelhanças. Quem sabe, não é mesmo?

Lembro de você querer saber um pouco do cordel que escrevo. Nossa! Tenho escrito muito! Sobre praticamente tudo que acontece e venho sentindo. Para mim, externar tudo isso, além de me aliviar, tenho a impressão de que ajuda outras pessoas também.

Foram tantos cordéis que eu até escrevi um que se chama “Assim que se faz cordel”. São décimas. Veja se esclarece um pouco mais sobre o tema?

Uma história bem contada
Em estrofes de primeira
Situação verdadeira
Ou outra coisa inventada
Depois que ela é registrada
Num padeço de papel
Será vendida a granel
Nas feiras ou numa venda
Explico, pra que me entenda
Assim que se faz cordel
Pode ser de assombração
Ou história de princesa
Cada estrofe, uma surpresa
Do herói ou do vilão
Pra garantir a emoção
Daquele ouvinte fiel
Caberá ao menestrel
Dar vida aos versos escritos
Nos folhetos mais bonitos
Assim que se faz cordel
A rima é muito importante
E a métrica também
Um roteiro que convém
Num tema bem relevante
Para seguir adiante
Disciplina de bedel
Não rime céu com quartel
Que é rima comparativa
Só com rima positiva
Assim que se faz cordel
Seis versos numa sextilha
Numa décima, dez pés
O poeta que através
De uma elegante setilha
Capricha na redondilha
Sobre a Torre de Babel
Ou sobre algum coronel
Que agiu com vilania
Tudo cabe na poesia
Assim que se faz cordel

Preciso confessar-lhe algo. Não a conhecia. Como pode isso? Não conhecer alguém com uma potência de atuação como a sua. De tantos projetos, de tantas inclusões. Uma mulher “super”? Adorei saber de suas ações em favor da inclusão feminina na literatura, leitura, cultura… Que vida dura! Mulher! Que missão tão pura! Tudo rimando assim! É preciso que mais mulheres sejam vistas. Afinal, protagonistas elas sempre foram, mesmo com a sociedade tentando escondê-las. Não tem como! Uma mulher vai lá e faz! Na hora que a coisa aperta mesmo, em casa, na família, na vila, na comunidade, no bairro, em qualquer lugar que ela esteja. Na hora que ninguém e nem nada resolve, a mulher resolve. Porque é de sua natureza. O feminino entende de vida mais do que qualquer outro.

Tem um poema seu que li outro dia e que tem muito a ver com este momento. “Closing time”. Na minha leitura, fala muito deste “tempo dormido” e, vamos combinar, precisaremos mesmo “acordar super” e sorrir por cima dos dias frios. Seguimos firmes, caminhando nos telhados de nossas solidões.

É preciso sim, “ter peito de ferro para o acaso de um dia novo, sem fórmulas, voltar aos farrapos de um céu já sem sol, os olhos fundos de histórias” e que finalmente possamos “largar a armadura, num canto da sala”. Com sorte, conseguiremos dormir e, finalmente, “acordar super”!

Eu penso muito no sentido do poema. Para mim ele tem muito mais a ver com o aquilo que o leitor sente e percebe do que com aquilo que o poeta ou a poetisa quis dizer com a palavra. Por natureza, o poema, para existir, precisa de alguém, para dar o sentido que lhe aprouver. Antes disso, são palavras num pedaço de papel apenas, arranjadas e guardadas num canto qualquer.

Na minha gaveta

Na minha gaveta
Eu encontrei
minhas meias palavras
             Uma peça antiga de um poema
             Em pedaços
Na minha gaveta
Eu encontrei
Sonhos esquecidos
Amores empoeirados
Paixões com cheiro de naftalina
            Na minha gaveta
           Havia um pouco de tudo
E por pouco não me perdi
Naquela gaveta!

Preciso externar que gostei muito de Jéssica, sua amiga. Ela está certa. Silêncios duros entre pessoas que se amam não é legal. Fiquei um tanto com inveja do seu jardim! Ah! Um jardim é tudo de bom. Moro em apartamento. Não temos jardim. Temos paredes. Temos o pôr-do-sol, que contemplo sentado em minha cadeira de balanço. Ameniza um pouco este isolamento.

Dias melhores virão e tenho certeza de que você se sairá bem desta. Você é uma potência de mulher e em breve teremos a oportunidade de conversarmos mais. Quando o nosso sarau voltar, adoraria tê-la conosco, compartilhando poemas, saberes e experiências de vida.

Tomei a liberdade de fazer este soneto para sua avó. Veio a inspiração e coloquei no papel, neste momento. Chama-se, “Saberes da vida”:

Ah! Querida por que tu nos deixaste?
Nosso exemplo de amor e alegria
Que esta dor no meu peito, não devaste
Os saberes que em ti, sempre trazia
Ah! Querida por que tu não ficaste?
Mais um pouco! Só um pouco, eu pediria
Mas talvez, este pouco nem me baste
Pois amor pede amor e contagia
Se partiste, um pouco fui contigo
Outro tanto de ti, ficou comigo
E seguimos felizes! De verdade!
O teu colo, tantas vezes foi abrigo
Tu estás nas palavras que hoje digo
Nos saberes da ancestralidade

Fique em paz, minha amiga. Fique em paz!

Um abraço sertanejo!

Do cordelista Samuel de Monteiro, do Cariri Ocidental Paraibano, vivendo em Campinas.

Imagens: Samuel de Monteiro

Carta 46 – De Mariana Paiva para Samuel de Monteiro

Samuel,

Como é ter nascido num sítio? Fiquei abismada (no sentido mesmo de cair num abismo) de saber isso de você. É nascer onde já se vai continuar, sem interromper nem se arvorar em fluxos desnecessários depois da alta do hospital. O jeito que a gente nasce muda muita coisa na vida da gente. Eu acho. Aí sou eu mesma teorizando porque, né, se a gente não tiver liberdade pra teorizar um pouquinho tanta palavra serve de quê? Apois, de nada.

Novidade eu tenho pouca pra contar. Tenho desviado muito habilmente das notícias pra poder lidar com minha própria dor da perda. Então não sei de jornal de rádio de notícia de última hora nada. Se vier o meteoro morre todo mundo sem direito a muita conversa, porque eu mesma só vou descobrir na hora da explosão. Eu, que sempre quis saber de tudo, agora corro do que tiver de novidade. Então vou falar direito: novidade eu tenho pouca pra contar e ando mesmo sem querer saber. Minha avó morreu, Samuel. Ela, que era viva, muito viva, mais viva que eu, você e todo mundo mais. Uma pandemia e um vírus correndo pelo corpo dela, fazendo estragos irrastreáveis pela medicina. E foi assim: a dois dias de ter alta do hospital ela se foi. Um trombo no coração. Eu entendo um pouco porque ela era muito viva e qualquer coisa que atrapalhasse e interrompesse o fluxo das coisas ela não tinha mesmo como gostar.

A vantagem de ter palavras é que a gente pode recontar as coisas, reescrever o que dói muito de um jeito que doa um tiquinho menos. Procuro lembrar disso todo santo dia, que eu tenho palavras, apesar de ter também muita saudade, e saber que PALAVRAS NÃO RECONSTROEM PESSOAS. Dessa parte eu não gosto mas confesso que não tenho muita opção a não ser seguir, então que seja sem saber muito – ao menos por esses dias – as notícias desse mundo. Os ratos todos fora dos bueiros, andando pelas ruas, verbalizando suas porcarias. Por que não se recolhem todos, por que não ficam de novo vexados de dizer o que pensam?

Então isso é 2020. Pelo menos não é culpa de ninguém como seria se fosse a terceira guerra mundial. Nesse ano a gente se consola com o que podia ter sido de pior. Por aqui eu grudo na arte mais que nunca porque sem ela, olhe, a gente não encara esse mundo não. Palavras sendo mãos dadas, música sendo abraço, beleza vista pelos olhos sendo como uma pele encostando na outra. 2020 e mesmo assim a primavera veio, você reparou?

Aqui mesmo o jasmim-manga está mais bonito que nunca, parece até que sabe que daqui de onde escrevo toda hora eu lhe espio, é bonito e meus olhos que quase não saem de casa agradecem. Enquanto te escrevo Caetano canta Trilhos Urbanos, que é também o nome de uma padaria em Santo Amaro da Purificação, lá na minha Bahia, que vendia uma massa de pizza pronta bem gostosa. Você conhece o recôncavo baiano? É um mundo à parte e bonito, o comércio nas ruas, todo mundo se falando, aquela confusão boa de rua de interior. Gosto tanto. Aliás preciso te dizer que dei um Google em sua cidade natal, Monteiro, e achei que ela tem um jeitinho de Santo Amaro, as luzinhas altas, os canteiros, a igreja.

Esses dias vi meus amigos aqui no jardim de casa. Chegaram, fazia sol, sentamos longe, todo mundo de máscara, e ficamos conversando. Só que aconteceu uma coisa que nunca rolou antes: silêncio. Muito silêncio. Que era um pouco o corpo de cada um trancando a natureza que nem menino birrento, zangado de não poder abraçar, de querer perto e ter que ser longe. A boca fez greve. Todo mundo calado, meio de cara amarrada por baixo da máscara. O mundo inteiro sendo aquele instante ali congelado no jardim de minha casa, o sol, a grama, as cadeiras tão afastadas, a pele querendo tocar querendo tocar querendo tocar. Até que Jéssica falou que daquele jeito era ruim, todo mundo concordou e as palavras voltaram. E o sol ali, alto, segurando a onda da gente.

Quantos anos cabem num ano? Você também tem a impressão de que antes era em outra vida? Aproveite e me conte alguma coisa sobre cordel, eu gosto mas sei tão pouco, e é tão bom saber mais das coisas boas. Em resumo, é isso: quero saber mais do bom e menos do ruim. Se der pra escolher, minha opção é essa aí

um abraço,

Mariana

Imagem: Mariana Paiva
Clique aqui para ler (ou ouvir) a resposta de Samuel de Monteiro a esta carta.