… em resposta à Carta 13.
Hoje é o dia mais frio do ano.
Fabíola, querida escritora,
Estou te escrevendo debaixo das cobertas no dia mais frio de 2020, é o que todos os jornais estão falando. Mas eu acho que é o dia mais frio da minha vida. Odeio frio! Odeio porque todo o meu corpo dói. Odeio porque penso nos bichinhos e nas pessoas que estão nas ruas, sem casa, sem cobertores suficientes… Odeio porque tenho a sensação de que as pessoas parecem fechadas, sisudas, andam rápidas pelas ruas, cabeças baixas, braços cruzados… Eu sei que não é tempo de abraçar. Mas penso que, mesmo não podendo abraçar, é bacana saber que só não estamos abraçando por causa desse vírus sem graça que teima em não ir em embora, e não porque o frio nos congelou o coração.
Hoje eu tive a benção de ter suas palavras tão singelas que me aqueceram o coração. Sabe aquele quentinho no coração quando a gente lê, vê, ouve alguma coisa bonita? Pois é. É desse quentinho que eu falo aqui. Me aqueceu, viu, o coração. E a alma também.
É tão bom saber que ainda existe no mundo gente que tem olhos bonitos, que tem olhos de enxergar miudezas, como os teus olhos que sorriram ao verem o lindo ipê no caminho do seu trabalho. Pareço louca dizendo que um ipê é miudeza, né? Uma árvore imensa cheia de flores amarelas, rosas, brancas, roxas (se bem que ainda não tive a felicidade de ver um ipê roxo!) é miudeza aonde? São mesmo árvores imensas, mas tem gente que não vê. Tem gente que não vê. Passa despercebida por um ipê não vê. Não vê, Fabíola. E ainda tem aqueles que só veem as flores no chão e chamam de sujeira.
Outro dia, eu parei debaixo de um ipê-menino e ele soltou as poucas flores amarelas que tinha no chão, achei que estava me cumprimentando, fiquei emocionada. Eu sou chorona demais, Fabíola.
Ah, você foi falar dos ipês na sua carta, me empolguei. Quando começo a falar deles, não paro mais. Eles colorem a minha vida. Aguardo ansiosamente por eles o ano todo. E quando eles florescem e os encontro em meu caminho, me sinto na obrigação de agradecer ao espetáculo. Sabe como eu faço? Se posso, vou até eles, encosto minha mão em seus troncos e lhes digo “obrigada” em pensamento. Eles escutam pensamentos, sabia? E entendem. Quando eu crescer, Fabíola, eu quero ser um ipê amarelo.
Depois que essa pandemia passar, espero que os ipês esperem mais um pouquinho porque a florada deles é rápida… Mas depois que passar, aceito sim, minha amiga, o teu convite para nos sentarmos debaixo de um deles e conversamos sobre todas as pequenezas da vida que nos agigantam o coração.
Você me disse em sua última carta que tem escrito bastante “para compor o relicário dos meus próprios (des)pertencimentos” e achei isso tão bonito! Ao mesmo tempo que pertencemos a esse espaço-tempo-vida-casa-pandemia, deixamos de nos pertencer. Nossa casa, nosso lar, nosso refúgio, que tanto ansiamos voltar depois de um longo dia de trabalho ou de um dia ruim, hoje no enfastia por estarmos tanto tempo dentro deles.
É preciso ver a vida lá fora. Eu preciso, Fabíola, por isso já não consigo escrever com tanta frequência. Já esvaziei a coisas bonitas que meus olhos/alma capturaram em minhas idas e vindas pela cidade. Agora preciso de mais… de mais vida, mais flores, mais gente, mais ipês no caminho, mais vida…
Esses dias, uma amiga me disse que a avó dela havia falecido. Não conheci a senhorinha, mas chorei quando pensei que agora a avó dela não veria mais os ipês. Olha eu falando dos ipês de novo, Fabíola. Me desculpe. Mas é que me sinto provocada por eles. Ipês costumam me trazer palavras. E fico triste de pensar que tem gente que morre e não vê. Gente viva, sabe? Gente viva que deixa de ver as miudezas da vida, morre. Morre mas fica vivo. Vagando como zumbi pela vida sem apreciar as belezas que a vida oferece.
Nunca me esqueci de uma mulher que estava no estágio terminal de um câncer, como seus médicos disseram. Ela me deu um abraço depois de uma conversa e disse sorrindo… um sorriso cheio de vida: “Viver é bonito demais, Daíse!”. Vida em um sorriso sentenciado. E que não morreu. Olha como a vida é, Fabíola. Um mistério. Você acredita que ela não morreu? Um desses milagres da vida. Eu sou gente que acredita em milagres. E no amor.
Depois que o sol esquentou um pouquinho, eu fui ao mercado e comprei um marmelo. Não fui para comprar um marmelo, mas, ele estava lá e comprei. Você já viu um marmelo, Fabíola? Já comeu? Eu nunca tinha visto um. Mas ele estava lá, grande e amarelo. Peguei, cheirei e comprei.
Na volta, no ônibus, o moço sentado atrás de mim se declarou para a moça ao lado dele. Ouvi a conversa. Sou curiosa. Mas a moça nada respondeu e eles seguiram a viagem em silêncio. Poxa… Eu queria que ela tivesse dado uma chance para ele, sabe. Se o acontecimento fosse um dos meus contos, no final, eles iriam se beijar e a moça diria “eu te amo também!” Eu sou bem dessas, Fabíola. Eu sempre torço para o amor. Alguns elogiam-me boba, outros, romântica. Mas eu sempre torço por finais felizes. Torço mesmo.
Você me perguntou o que eu tenho feito nesses dias estranhos… Trabalho em casa, vez ou outra preciso sair na rua para resolver coisas necessárias como mercado ou visita a algum médico, falo com alguns amigos usando a tecnologia e pessoalmente bato papo com a lagartixa que mora no meu quarto e não paga o aluguel. Ela veio aqui para casa lá pelos idos de 2012, assim como quem não quer nada e ficou. E foi minha melhor companheira quando em 2013 precisei fazer uma cirurgia e ela que me ouvia em todo o
tempo da recuperação. Com o tanto de tempo que passou aqui, fez amizade com os bichinhos do meu jardim: o lagartão verde que mora no buraco do muro, a borboleta amarela que só tem uma asa, a Cocozinha, que é minha filha vira-lata. Na verdade, Cocozinha e a lagartixa não são tãooooooooo amigas assim. Vivem disputando o meu coração. Uma briguinha boba, sabe, já que as duas têm lugar cativo e grande aqui.
Tenho tentado, mesmo à distância, não perder o vínculo com aqueles que eu quero que fique para sempre. Tive uma perda, sabe? Tive que viver um luto de alguém vivo… Chorei muito. Mas agora estou mais forte e não quero falar disso. Estou respondendo a sua pergunta sobre as minhas perdas. Perder é sempre triste. É sempre triste.
Agora vejo que teremos tanto para conversar e dar risadas, reforço que aceito o seu convite. Irei com um dos vestidos que mainha fez para mim e te empresto sim um deles. O que você quiser. O amarelo é o meu preferido e te empresto (se você gostar de amarelo, claro), para usá-lo em uma tarde de sol e céu azul. Céu de brigadeiro. Eu não sei fazer brigadeiro, sempre fica duro que parece pedra. Você leva brigadeiro para nosso piquenique? Eu levo feijão, que é o que eu sei fazer melhor. É brincadeira! Levo bolo de maçã com aveia e jogamos brigadeiro por cima. Segredo nosso. E daremos muitas risadas e falaremos sobre a beleza dos ipês e tudo o que aprendemos ou desaprendemos nesses dias.
Que Deus continue nos guardando. Que tudo seja leve. Doce. Sereno.
Um abraço, minha amiga.
Daíse Lima