CARTA 25 – De Daíse Lima para Fabíola Rodrigues

… em resposta à Carta 13.

Hoje é o dia mais frio do ano.

Fabíola, querida escritora,

Estou te escrevendo debaixo das cobertas no dia mais frio de 2020, é o que todos os jornais estão falando. Mas eu acho que é o dia mais frio da minha vida. Odeio frio! Odeio porque todo o meu corpo dói. Odeio porque penso nos bichinhos e nas pessoas que estão nas ruas, sem casa, sem cobertores suficientes… Odeio porque tenho a sensação de que as pessoas parecem fechadas, sisudas, andam rápidas pelas ruas, cabeças baixas, braços cruzados… Eu sei que não é tempo de abraçar. Mas penso que, mesmo não podendo abraçar, é bacana saber que só não estamos abraçando por causa desse vírus sem graça que teima em não ir em embora, e não porque o frio nos congelou o coração.

Hoje eu tive a benção de ter suas palavras tão singelas que me aqueceram o coração. Sabe aquele quentinho no coração quando a gente lê, vê, ouve alguma coisa bonita? Pois é. É desse quentinho que eu falo aqui. Me aqueceu, viu, o coração. E a alma também.

É tão bom saber que ainda existe no mundo gente que tem olhos bonitos, que tem olhos de enxergar miudezas, como os teus olhos que sorriram ao verem o lindo ipê no caminho do seu trabalho. Pareço louca dizendo que um ipê é miudeza, né? Uma árvore imensa cheia de flores amarelas, rosas, brancas, roxas (se bem que ainda não tive a felicidade de ver um ipê roxo!) é miudeza aonde? São mesmo árvores imensas, mas tem gente que não vê. Tem gente que não vê. Passa despercebida por um ipê não vê. Não vê, Fabíola. E ainda tem aqueles que só veem as flores no chão e chamam de sujeira.

Outro dia, eu parei debaixo de um ipê-menino e ele soltou as poucas flores amarelas que tinha no chão, achei que estava me cumprimentando, fiquei emocionada. Eu sou chorona demais, Fabíola.

Ah, você foi falar dos ipês na sua carta, me empolguei. Quando começo a falar deles, não paro mais. Eles colorem a minha vida. Aguardo ansiosamente por eles o ano todo. E quando eles florescem e os encontro em meu caminho, me sinto na obrigação de agradecer ao espetáculo. Sabe como eu faço? Se posso, vou até eles, encosto minha mão em seus troncos e lhes digo “obrigada” em pensamento. Eles escutam pensamentos, sabia? E entendem. Quando eu crescer, Fabíola, eu quero ser um ipê amarelo.

Depois que essa pandemia passar, espero que os ipês esperem mais um pouquinho porque a florada deles é rápida… Mas depois que passar, aceito sim, minha amiga, o teu convite para nos sentarmos debaixo de um deles e conversamos sobre todas as pequenezas da vida que nos agigantam o coração.

Você me disse em sua última carta que tem escrito bastante “para compor o relicário dos meus próprios (des)pertencimentos” e achei isso tão bonito! Ao mesmo tempo que pertencemos a esse espaço-tempo-vida-casa-pandemia, deixamos de nos pertencer. Nossa casa, nosso lar, nosso refúgio, que tanto ansiamos voltar depois de um longo dia de trabalho ou de um dia ruim, hoje no enfastia por estarmos tanto tempo dentro deles.

É preciso ver a vida lá fora. Eu preciso, Fabíola, por isso já não consigo escrever com tanta frequência. Já esvaziei a coisas bonitas que meus olhos/alma capturaram em minhas idas e vindas pela cidade. Agora preciso de mais… de mais vida, mais flores, mais gente, mais ipês no caminho, mais vida…

Esses dias, uma amiga me disse que a avó dela havia falecido. Não conheci a senhorinha, mas chorei quando pensei que agora a avó dela não veria mais os ipês. Olha eu falando dos ipês de novo, Fabíola. Me desculpe. Mas é que me sinto provocada por eles. Ipês costumam me trazer palavras. E fico triste de pensar que tem gente que morre e não vê. Gente viva, sabe? Gente viva que deixa de ver as miudezas da vida, morre. Morre mas fica vivo. Vagando como zumbi pela vida sem apreciar as belezas que a vida oferece.

Nunca me esqueci de uma mulher que estava no estágio terminal de um câncer, como seus médicos disseram. Ela me deu um abraço depois de uma conversa e disse sorrindo… um sorriso cheio de vida: “Viver é bonito demais, Daíse!”. Vida em um sorriso sentenciado. E que não morreu. Olha como a vida é, Fabíola. Um mistério. Você acredita que ela não morreu? Um desses milagres da vida. Eu sou gente que acredita em milagres. E no amor.

Depois que o sol esquentou um pouquinho, eu fui ao mercado e comprei um marmelo. Não fui para comprar um marmelo, mas, ele estava lá e comprei. Você já viu um marmelo, Fabíola? Já comeu? Eu nunca tinha visto um. Mas ele estava lá, grande e amarelo. Peguei, cheirei e comprei.

Na volta, no ônibus, o moço sentado atrás de mim se declarou para a moça ao lado dele. Ouvi a conversa. Sou curiosa. Mas a moça nada respondeu e eles seguiram a viagem em silêncio. Poxa… Eu queria que ela tivesse dado uma chance para ele, sabe. Se o acontecimento fosse um dos meus contos, no final, eles iriam se beijar e a moça diria “eu te amo também!” Eu sou bem dessas, Fabíola. Eu sempre torço para o amor. Alguns elogiam-me boba, outros, romântica. Mas eu sempre torço por finais felizes. Torço mesmo.

Você me perguntou o que eu tenho feito nesses dias estranhos… Trabalho em casa, vez ou outra preciso sair na rua para resolver coisas necessárias como mercado ou visita a algum médico, falo com alguns amigos usando a tecnologia e pessoalmente bato papo com a lagartixa que mora no meu quarto e não paga o aluguel. Ela veio aqui para casa lá pelos idos de 2012, assim como quem não quer nada e ficou. E foi minha melhor companheira quando em 2013 precisei fazer uma cirurgia e ela que me ouvia em todo o
tempo da recuperação. Com o tanto de tempo que passou aqui, fez amizade com os bichinhos do meu jardim: o lagartão verde que mora no buraco do muro, a borboleta amarela que só tem uma asa, a Cocozinha, que é minha filha vira-lata. Na verdade, Cocozinha e a lagartixa não são tãooooooooo amigas assim. Vivem disputando o meu coração. Uma briguinha boba, sabe, já que as duas têm lugar cativo e grande aqui.

Tenho tentado, mesmo à distância, não perder o vínculo com aqueles que eu quero que fique para sempre. Tive uma perda, sabe? Tive que viver um luto de alguém vivo… Chorei muito. Mas agora estou mais forte e não quero falar disso. Estou respondendo a sua pergunta sobre as minhas perdas. Perder é sempre triste. É sempre triste.

Agora vejo que teremos tanto para conversar e dar risadas, reforço que aceito o seu convite. Irei com um dos vestidos que mainha fez para mim e te empresto sim um deles. O que você quiser. O amarelo é o meu preferido e te empresto (se você gostar de amarelo, claro), para usá-lo em uma tarde de sol e céu azul. Céu de brigadeiro. Eu não sei fazer brigadeiro, sempre fica duro que parece pedra. Você leva brigadeiro para nosso piquenique? Eu levo feijão, que é o que eu sei fazer melhor. É brincadeira! Levo bolo de maçã com aveia e jogamos brigadeiro por cima. Segredo nosso. E daremos muitas risadas e falaremos sobre a beleza dos ipês e tudo o que aprendemos ou desaprendemos nesses dias.

Que Deus continue nos guardando. Que tudo seja leve. Doce. Sereno.

Um abraço, minha amiga.


Daíse Lima

Imagem: Daíse Lima

CARTA 13 – De Fabíola Rodrigues para Daíse Lima

Minha querida Daíse,

… hoje, pela manhã, a vida me deu um presente e eu passei o dia todo apertando os olhos para retê-lo, com o máximo de detalhes, fechei os meus olhos miúdos tantas e tantas vezes para plasmar na retina da lembrança esse momento irrepetível em que o acaso desafia nossa capacidade de dizer. Será imperfeito, mas eu quero lhe contar.

A caminho do trabalho, parada em um semáforo, o céu estava placidamente azul, era mais uma daquelas manhãs lindas de inverno em Campinas, olhei para cima, o vento balançou de leve as árvores dos canteiros, foi um convite para que dançassem o mais bonito dos minuetos e, de repente, nessa ínfima fração que separa o banal do extraordinário, as flores rosadas dos ipês se precipitaram sobre o para-brisa transparente do carro, uma chuva de flores cor-de-rosa desabando sobre mim, meus olhos se inundaram do verde que só lhes visita quando choro, ou quando estou radiante, ou quando estou radiante e choro, e meu rosto estava lavado de um choro radiante porque no meio da dor, da tristeza e da desesperança dessa pandemia, a vida explodiu a plenos pulmões diante do meu assombro.

Sei que você ama os ipês mais do que ama Paris, Daíse, sei que amamos as flores dos ipês tanto quanto os japoneses amam as flores das cerejeiras, minha amiga, e se não houvesse esse toque imperioso de recolher nossos afetos, juro, minha querida, que faríamos um piquenique debaixo dos ipês que florescem toda a delicadeza da vida nessas manhãs tépidas de inverno. Por que não fizemos isso antes? Por que só nos lembramos do que importa quando estamos na soleira do adeus?

Eu tenho escrito, Daíse, incessantemente, para lembrar, para esquecer, para lembrar-esquecer, para perder e não perder, para compor o relicário dos meus próprios (des)pertencimentos, para manufaturar o inventário do ano em que morremos e nascemos no mesmo dia, o ano em que recolhidos na nossa solidão, coamos as nossas sombras usando minúsculas armadilhas esculturais para a luz.

A essa altura, você sabe, minha querida, que os ipês são apenas um pretexto para lhe escrever, para aguçar os meus ouvidos para a música que vem das suas palavras, esses são tempos em que não cabem excessos, um tempo em que só quem se acostumou a olhar o mundo com lupa dispõe do mapa do tesouro para chegar até o fim.

Daíse, você é poeta dessa estirpe rara de gente como o Manoel de Barros, conhecedor da gramática das formigas, assuntador das desimportâncias, homem que as violetas imensam, e eu nunca vou me esquecer de que você já mapeou o cansaço das borboletas e abrigou em seu quarto, no mais absoluto segredo, uma família de lagartixas sem-teto. Eu me imenso de sua poesia porque contigo aprendi o imenso da beleza insopitável de tudo o que não tem permanência, nem residência fixa, nem nome próprio, muito menos sobrenome.

Na clareira de nossas casas, às vezes de nossos apartamentos tão pequenos, viceja um mundo que antes não tinha nem eira nem beira, um mundo com o qual nunca nos preocupamos em batizar, em tirar fotografia, em dispor de faca e garfo, de convidar para um lugar à mesa. Agora, estamos mais atentos, apuramos os nossos ouvidos, vestimos roupas mais confortáveis e podemos brincar com o enfado, como sabiamente fazem as crianças pequenas, adivinhando animais e formas na matéria inefável das nuvens.

No sopé da nossa mais absoluta impotência, minha amiga, escrevemos cartas. Eu disse exatamente isso para o César, dias atrás: como esses são tempos estranhos e entranhados, tenho gostado de visitar a letra e a voz dos amigos poetas, e hoje estou batendo à sua porta. O que você tem feito nesses dias estranhos, minha amiga? Que colcha de Penélope você tem tecido para enganar a dor de cabeça, os pés gelados, o medo da morte? Como anda seu catálogo de perdas? E sua contabilidade de afetos?

Eu vou lhe confessar, Daíse, que sinto falta dos papéis de carta. Quando eu era menina, todas as meninas da minha escola colecionavam papéis de carta, havia pastas repletas dos papéis de carta mais lindos, mais decorados, mais coloridos, às vezes eles eram até perfumados, eu só estranhava e me entristecia que aqueles papéis nunca recebessem palavras, que jamais pudessem abrigar a mácula de uma letra.

Eu nunca colecionei papel de carta porque não tinha dinheiro para comprá-los. E quando tinha dinheiro para comprá-los, eu rabiscava as palavras mais bonitas que conhecia na extensão absoluta deles, e acho até que foi assim que aprendi a jogar xadrez com as palavras. A palavra é uma nódoa, acho que por isso a palavra não cabe no ideal de beleza de tanta gente. A palavra é uma nódoa com a profundidade de um abismo – mas, por acaso, há outro modo de viver senão morrendo, um pouco a cada minuto, em derradeira queda livre?

Eu hoje queria ter um papel de carta, para escrever esta carta, e fazer jus à chuva de flores cor-de-rosa do ipê que floriu um dos seus últimos suspiros diante do meu pasmo. Você me conhece, Daíse, sabe que estou puxando assunto para ver se a palavra não fenece, até hoje eu tenho medo de que nossas palavras feneçam. Esses são tempos estranhos, tempos de sobrevivência, você já reparou que, se não estamos todos no piloto automático, no mínimo, estamos ligados em certo modo absurdo de sobrevivência?

Curiosamente, é a poesia que nos eleva para além do modo de sobrevivência, porque quem sobrevive, não vive. Não há prazer, não há fruição, não há beleza, não há encantamento, não há inutilidade no modo de sobrevivência, toda a energia escassa disponível precisa ser empregada no que é útil e no que dá suporte à vida. Ah, Daíse, temos medo de morrer e estamos morrendo todos os dias, o modo de sobrevivência é um convite sombrio e totalitário para uma vida sem vida. Para uma morte em vida.

Eu fico pensando, às vezes, no que será de nós e em que destino terão nossas palavras. O gênio e a loucura só existem entrelaçados no nosso imaginário porque os nossos antepassados românticos deram esse destino para a peste: a tuberculose, o mal por excelência do século XIX, tornou o bacilo de Koch uma espécie de Midas ambíguo, a tuberculose deliquescia o corpo, mas burilava o espírito, surgia o gênio, ainda que seu preço fosse a loucura. Qual é o naco de nossa própria carne que essa pandemia exigirá de nós, que partes do que somos estarão irremediavelmente perdidas quando recolhermos os nossos guarda-chuvas, finda a tempestade?

Eu quase não durmo quando penso na nossa contabilidade de mortos. Não só daqueles que amamos e que perdemos, mas também de todos aqueles que não puderam sequer nascer. Das vozes que morreram quando estavam se formando na garganta, das explicações que não foram dadas, dos encontros que não tiveram lugar, das desculpas sinceras que não puderam ser trocadas, do toque de mãos, do abraço, do adeus, dos olhos embaciados pelos rios que nutrimos do lado de dentro e que não foram nunca vistos por quem neles mataria sua sede.

Eu não sei se haverá reparação possível para esse tempo sem tempo, minha amiga, mas é inegável que a vida segue seu curso. No seu jardim, as borboletas miúdas tomam fôlego antes da próxima valsa, as joaninhas brincam de esconde-esconde nos cogumelos vermelhos pintados de branco, os passarinhos trazem notícias de bandas distantes, mensageiros eficientes que sempre são a tocar e a trocar a substância da vida do lado de cá e de lá.

Quando pudermos sair ao sol, espero que você possa me emprestar um dos seus vestidos coloridos, feitos por sua mãe. Eu lhe trarei, prometo, uma rosa bonita, carmim, uma rosa cor de “vermelho amanhecer” para enfeitar os seus cabelos. Fecharemos os guarda-chuvas e nos esparramaremos pelos tapetes dos ipês cor-de-rosa porque na terra da nossa fabulação íntima os ipês florescem incessantemente. Dentro e fora dos meus olhos. No encontro do rio e do mar de nossos afetos. O ano todo.

Um abraço com carinho,

Fabíola

Campinas, inverno de 2020

Imagens Fabíola Rodrigues
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