CARTA 19 – De Fabíola Rodrigues para Rafa Carvalho

em resposta à CARTA 7.

Rafa, meu (já) irmão,

Minhas mãos ainda estão enregeladas e sinto que elas relutam em deixar deslizar a caneta sobre o papel. Está escuro, mas recebo com toda a gentileza do meu espírito a sua chegada, a da primeira estrela. É bonito partejar o dia, no ocaso do escuro, partejar os primeiros raios da aurora, vê-la surgir e se apagar, tão brevemente, a estrela da manhã.

É com inefável respeito que penso nesse partejamento, no mistério da noite que se dissolve na paleta de cores do dia. O azul profundo coado pela luz da manhã se torna um pálido azul, violáceo, até explodir na luz laranja que acalenta, abrasa e assanha a vontade da vida. De ver o lado de lá. O mar. A nau. As contas de mar. O mundo.

Ao contemplar o solene parto da manhã, é com delicadeza que penso nessa sua vocação de doula da palavra, irmão: é bonito ver um homem partejar a palavra, com sua força e sensibilidade dar um lugar ao mundo para a palavra que vem do outro, para a palavra que se não fosse por suas mãos gentis, pelo acolhimento do que em você silencia para que aquilo que habita o outro possa surgir, talvez restasse encruada dentro de silêncios estéreis.

É assim que penso o “Sarau da d’alva”, o sarau da estrela da alvorada, o lugar do nascimento de tantas palavras e de tantos artífices – por vezes anônimos – do verbo, a origem do mundo. Talvez, não fosse sua vocação de parteira da chama que incandesce a vida, essas criações e criaturas não viriam a nascer, não poderiam existir, re-existir, resistir. Fiat lux: salve a estrela primeira, primípara, aquela da alvorada, salve o Sarau da d’alva, Rafa, meu irmão!

É pensando no “Sarau da Dalva” que lhe escrevo nesses tempos incomuns, e também sonhando com o “Rolê das Domésticas” – por favor, me dê notícias disso! – os olhos (rasos) d´’agua de Conceição Evaristo, os restos amargos do fim do dia, no quarto de despejo, da Carolina Maria de Jesus: eu sonho com essas mulheres e a água vertida de seus desertos, todos os dias. Acho que as desimportâncias nos irmanam, Rafa, e a auscultação dos silêncios ruidosos que tamborilam no coração daqueles esmagados pelas máquinas de moer carne dos donos do poder, também.

Ainda em mim ecoa a imagem do menino franzino com o pesado dicionário na mão, navegando com sua nau frágil o mar infinito das palavras: fiquei comovida com a história que você me confidenciou, ao contar do seu fascínio pela palavra e do seu desapontamento com os muros intransponíveis que elas podem erigir. A dor e a delícia, o céu e o inferno das palavras, a dura batalha da linguagem exitosa.

A linguagem de êxito é uma busca que me toca no plural, tanto na fibra de poeta quanto na de psicanalista: a linguagem, quando feliz, quando tira o outro para dançar, quando alcança o lado de lá, tem algo de insondável e de misterioso como a pedra de Bolonha, essa pedra dos alquimistas que incandescendo à noite a luz que reteve durante o dia, desvela-nos a potência de nossa própria verdade.

É pela mais profunda experimentação da linguagem que busco a estratigrafia da verdade; pela ousadia de enunciá-la, imagino que janelas, portas e varandas também hospedem a verdade que galopa nos mundos do outro, desses inúmeros outros, o interlocutor, o leitor, o ouvinte, o paciente.

A palavra comporta a linguagem, mas a linguagem é a experiência de estar no abrigo do outro e isso extrapola as palavras. Por isso, podemos compreender o sentido das palavras sem sabê-las, por isso podemos intuí-las antes de pensá-las, por isso seu pai pôde notá-las em seu caderno de experimentações linguísticas antes que seu juízo lhe clarificasse que ele não dominava os verbetes do dicionário.

Rafa, você se entristeceu quando se deu conta de que na palavra também se inscrevem demarcações que disjuntam e distinguem, que a palavra pode ser revólver, lâmina e flecha. E, a seu modo, golpeou os tijolos desse muro da vergonha que ameaçou excluir a presença de seu pai do mundo novo que se afigurava diante de seus olhos. Inconformado com a possibilidade de não se fazer compreender, fez-se demiurgo da linguagem.

Penso que essa experiência pode se repetir, transgeracionalmente, de um jeito curioso: antes que seu filho entenda a palavra mar, antes que ele soletre a palavra mar, antes que ele escreva com letras trêmulas a palavra mar, antes que ele localize no seu velho dicionário a palavra mar, ele saberá o mar ao fechar os olhos e se recordar do marulhar da sua voz, nas noites em que adormeceu, exausto, em seu colo de nau, embalado por essa cadência repetida e suave, a niná-lo de leve.

A palavra escrita é sempre essa reminiscência dos ecos mais antigos que ouvimos, do maravilhamento e do terror que experimentamos na presença-ausência do outro, sem o qual não podemos humanamente existir. É porque alguém nos investiu de cuidados e de linguagem, de uma linguagem de corpo, de toques, de sons, de cheiros e de afetos, que podemos evocá-la, a linguagem, nessa babel, ao mesmo tempo familiar e estrangeira, das palavras esculpidas no papel.

Talvez por isso, eu tenha esse hábito cultivado de tirar do mofo as palavras anódinas, aquelas esquecidas, abandonadas pelo vaivém de nossos usos e desusos, por acreditar que elas nos contam sobre algo que antecede a sua própria escritura: é pelo som familiar que produzem em nossos ouvidos, a despeito da estrangeiridade de que se revestem em sua forma de vocábulo ignorado – posto que já as esquecemos – é que podemos (re)lembrar aquele encontro estético primeiro, aquele desassossego que sentimos quando a música brotada do outro se tornou lírica na atenuação de nossas angústias.

As palavras são como linhas de um corpo, como acidentes geográficos de nossa topografia íntima, e também é assim que vejo a cidade, percorrendo-a como se percorresse o mapa de um corpo. Você me perguntou sobre a cidade, irmão, se também não me enche de horror o abismo que se abre sob nossos pés, todos os dias. Respondo-lhe que sim, que me enche de horror e de curiosidade, de medo e de fascínio, como esse contato primeiro que surge do perfume que descobrimos irrepetível a emanar dos cabelos de nossas mães.

A cidade é uma mãe-medusa descabelada, tem cicatrizes terríveis, uma voz rascante, um apetite voraz que se lança sobre as nossas carnes débeis, mas ela pode ser morta e reinventada. Essa mãe adotiva e feroz que legamos daqueles que giram as manivelas dos moedores de carne sobre nossas cabeças, não é uma cidade que devamos tomar por nossa, de quem tenhamos de aceitar essa pérfida maternagem.

Eu percorro a cidade como quem percorre o mapa de um corpo acalentado nas asas verdes da minha esperança. É uma cidade epifânica, de voz mansa, de gestos gentis, imaginada, primeiro, disputada, politicamente, depois. Não sei como será disputar politicamente essa cidade sonhada e fabulada, em tempos de isolamento pandêmico. Somos muitos, mas querem esmagar nossas cabeças e arrancar nossas vísceras; só fazemos recuar os tanques de guerra dos inimigos quando emprestamos nossa voz e nossos corpos para as ruas. Mas, como emprestar nossa voz e nossos corpos para as ruas se um vírus matreiro nos devolveu à nossa mais profunda insignificância?

Suspeito que tenho achado a cidade fantasmagórica, nos últimos tempos, apesar do pandemônio nas ruas, pela impossibilidade, ou, pelo menos, pela extrema dificuldade, dessas insurgências. A pandemia também facilitou a boa consecução de outros higienismos em curso: os socialmente indesejáveis agora se tornaram, também, mais facilmente apagáveis, e penso que precisamos resistir a esses silenciamentos.

Resistir existindo, nos corpos das mulheres trans, na bagagem dos migrantes pobres, na prosódia estrangeira dos refugiados. Existe uma cidade ávida de justiça e beleza, ardendo nas veias da cidade embotada pela exuberância falsa dos truques baratos de prestidigitadores abancados no poder.

Existe uma cidade que se ilumina com as luzes da Fazenda Roseira, nas noites de festa do Jongo Dito Ribeiro, que se enche de poesia quando em janeiro as Folias de Reis inundam de colorido as ruas acanhadas das periferias. Existe uma cidade que pronuncia os mais bonitos nomes de Deus quando mãe Dango perfuma de generosidade e de amor as escadarias da Catedral Metropolitana, esse depoimento indelével do gênio artístico que se agigantou diante da mesquinhez dos escravocratas, o gênio criador de Vitoriano dos Anjos

É essa cidade múltipla, multifacetada, festiva, estrangeira, sincrética e migrante que me interessa. É essa a cidade que busco acariciar com meus olhos de espanto quando deslizo por seu mapa, todos os dias. Por vezes, essa cidade-medusa me petrifica com seu olhar assassino, coalhado de perversidades e de injustiças. Mas, também, é essa cidade que me enche do mais profundo amor, quando ao olhar a primeira estrela da manhã, ouço os ecos das vozes partejadas pela coragem do homem que pariu a alvorada da poesia.

Um abraço com carinho,

Fabíola

Campinas, inverno de 2020

Imagens: Fabíola Rodrigues

Carta 7 – De Rafa Carvalho para Fabíola Rodrigues

Campinas, quarentena de 2020

Fabíola, já querida

Espero que esta carta lhe encontre bem, no meio disto tudo. E que seja uma brecha, da amizade, em face ao tanto desamor presente, no país; mundo.

Que bom, nos conhecermos assim. Na verdade, tenho uma memória vaga de ter lhe visto já em Campinas, falando de seu segundo livro, talvez. As “pílulas”. E aproveito pra contar que tenho lido as suas “cartas náuticas”. Um título assim jamais me passaria desapercebido. Aliás, temos a coincidência africana em nossos livros de estreia. E os títulos marinhos, em certa medida. Soube também que você tem escrito mais um título de poesia e seu primeiro nos contos. Desejo-lhe a boaventura nos dois.

Às vezes bato o olho no corpo dum poema seu, e sinto uma afinidade visual entre nós. Nos conteúdos, somos dois universos distintos. E há potência no encontro de dois universos distintos. Sua trajetória me parece muito rica, interessante… e me faz pensar que Campinas não cuida de seus principais patrimônios. Sempre digo que sinto “um amor de mãe” pela cidade… o que quer dizer que eu a amo muito, mas ela faz cada bobagem…

Como vai o Vida Nova, falar nisso? Fui muito feliz trabalhando lá. Mas me dói um soco a ironia do nome… não lhe parece estranho um bairro chamando assim, quando o que está viável à sua população não passa de mais do mesmo? Dessa velha vida de colonização e injustiça social que cansam qualquer mínimo coração mais ou menos batendo?

Sinto que também temos semelhanças nas nossas atuações “não-literárias”, para quem acredita nessas cisões. Só que nelas, a forma talvez varie. No entanto, quero lhe agradecer pelo serviço social. Comemoro, cada vez que vejo uma escritora ou escritor agindo nisso. A propósito, imagino que você – com a oscilação entre assistência social e a psicanálise, o Vida Nova e as imediações bacanas do consultório, às contradições do Centro e do Bosque – esteja plena da complexidade da cidade.

E quero saber de você. De como está nesta pandemia, mas também de assuntos mais específicos – ou nem tanto – como: linguagem. Como você pensa a linguagem? Pergunto pois tenho nisso um dilema pessoal. Temos muitas pessoas no Brasil em estado de analfabetismo funcional. A literatura é extremamente elitizada no país. Eu não venho das elites mas, por acaso, me tornei um fazedor de literatura. Operário das letras. E amigo – talvez íntimo – da linguagem. Pode ser que, de repente, a tenha desenvolvido um tanto, do meu jeito. É fato que, entre minhas esquisitices da infância, estava largar a rua por instantes pra sentar na sala com um dicionário velho e pesado que mamãe tinha ganhado da patroa; e caçar palavras… me divertia colecionando sentidos. Mas aí, um dia, meu pai – que nunca foi à escola – disse que lia tudo o que eu escrevia, mas que tinha dificuldades para entender. Ou pior: não entendia. Aquilo me gerou uma dor; conflito. Como eu escrevia? Para quem? Considerando o quê? E muito mais que isso: como a literatura – independente dos modos de escrita – chegaria a qualquer pessoa brasileira? Como fluir este encanto? E se olhamos bem, você sabe, este papo não é mais sobre literatura… mas sobre vida, a vida nova – o mundo novo de que falava Galeano… sobre justiça social, raça única e diversa; comungada comunidade humana.


Por outro lado, aquilo que parece ser a elite, além da obstrução quase que total do coração – de sempre – dá pinta de cada vez mais elogiar a burrice e a estupidez. Como se aquela inteligência perversa e maquiavélica dos vilões ficasse só com os invisíveis… os pouquíssimos que realmente têm ditado este jogo. E por razões bem diferentes: não houvesse tanta distinção entre a consciência limitada de quem sufoca com a máscara no ônibus cheio travado no trânsito das obras do BRT no Ouro Verde; e quem desfila seu porsche novo nas imediações do shopping mais pomposo da cidade.

Como você vê tudo isso? Quais são seus conflitos – e esperanças, por favor – entre os ofícios que pratica, quando escritora, assistente social e analista? A poesia – lembrando o título do seu segundo livro – pode curar qualquer coisa nossa nesse sentido, pra você? Alguma idéia de como isso seria? E quem cura a poesia; a cidade?


Temos direito à cidade? Campinas, tem direito à poesia?

Um abraço forte,


Rafa

Imagens: Rafa Carvalho
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