Carta 51 – De Adriana Zapparoli para Mariana Paiva

em resposta à Carta 39.

Campinas-feliz, em novembro de 2020, ou não, passarinho de colar.

Prezada Mariana-Doce,

O dia está nublado e eu penso em responder sua missiva. Sabe, de sua carta, o que me trouxe bem estar foi uma leve brisa. Brisa de favos e afagos. A rotina me domina; tenho tomado atitudes além da saliva transbordando nos cantos da boca. Para ser sincera converso pouco. A poesia vem tomando o meu raciocínio. Não dura muito tempo e, quando surge, eu tendo oportunidade, redijo, uma carta para uma amiga. O sol da janela traz um reflexo verde limão-musgo. É um verde abilolado e cansado de raios. Mas o verde é forte e não se torna mais claro pelo excesso de luz-luar-solar. Ouço barulhos dos carros e das motos que trafegam sem parar no limite do asfalto. Aqui há apenas o som do ventilador. Gosto de ventiladores… ventila-dores, ventila-dor, venti-la-dor… Em sua carta você me pergunta sobre a poesia… Existe poesia na dor, na tristeza, nos escuros. Não tenho receio de encontrá-la. A poesia da beleza, do amor, favorece a poesia do lugar-comum. A poesia de sempre. A poesia mais do mesmo. A poesia me too.

Leio os escritores: são todos escritores do gênero poesia. Não me parecem poetas. Eu não sou poeta. Eles não o são. Para sermos poetas, nos seria necessário muito mais alma e cadinhos de sublimação. Claro, você pode discordar, mas no momento, é assim que concebo a poesia contemporânea. Todos somos aprendizes. Todos escrevemos muito mal. Algum escritor de poesia se sobressai um pouco mais nesse estilo. Outros menos. Sou avessa as leituras que me trazem memórias de escritores do passado. Então, talvez seja por isso que venha a experimentar tanto na escrita, e confesso: devo reescrever sempre. Dos autores contemporâneos… Sobre alguns poemas me chamam a atenção. Outros nem tanto… e “ la nave va”… mesmo assim, eu insisto na escrita e na leitura. Tive poemas publicados em outros países… Tive poemas que eu tentei me expressar em outro idioma. Experimentar literatura é sempre divertido. Também redijo as dores. Você acompanha as dores femininas, Mariana? Penso nas mulheres ancestrais que trago; nessas memorias que trazem o meu DNA. Fico pensando que sou a reencarnação dessas mulheres, que me incorporam nessas outras vias por meio das moléculas de carbono e, também, naquelas mais próximas que (des)conheço. Passarei essa vida gritando sobre a igualdade feminina. Mas afirmo que, com a chegada da COVID caímos e, ainda, rastejamos. Nossos sonhos estão criopreservados… Nossos sonhos, Mariana, que eu espero, não tenham medos de escuros, assim como eu ou você.

Estive andando pelas ruas. E não gosto nada da sensação. Havia um vírus na espreita… A sensação era essa. Não poderia haver descuido. Quem sabe venha a ter uma crise psicótica meio a esse inferno. Opto por ambiências abertas. Opto por espaços onde minha vida pareça mais protegida… enquanto segue a entropia. Sigo. Sigo tentando organizar o caos do meio ambiente interior. É por meio da (des)ordem a minha vida se mantém. A desordem nos obriga novas formas de ordem, um caos ordenado. Porque o tempo só anda para frente, e vivemos até o dia da produção da entropia máxima. E eu não aprendi a viver, ainda…

[sobre braços e pálpebras existem farelos castanhos e restos indigestos da febre e do repouso. existem conjuntivite, coriza, perda do apetite e existem flores do dia em sonho do amor, da bacia da boca

(que não existe)…

inexiste entre um fôlego e outro, entre o egoísmo e outros gestos de orelhas superiores.

centelha que existe, o fígado e o pâncreas que assistem a parte interna das bochechas, o exantema de Koplik e um cardio-peito convoluto que deflagra horrores.

insistem…

nos corpos copro-cavernosos de ogros, resiste o que se vê na encefalite (o que se vê, e não existe) na vertigem e dentro da bacia de sua boca

-fosso: o amor

que inexiste.

então, venha, venha meu amor, porque eu lhe mataria todos os dias se preciso fosse…]

Vejo fotos e admiro o seu sorriso!

Como está a semana em terras de barão? Quantos momentos felizes eu tive nessas terras de urso-polar e cobras-cegas. Existem baronesas e mamão papaia. E é tudo tão areia… O amor de minha vida eu vivi aí…

Um abraço, flor Mariana

Adriana Zapparoli

Imagem: Adriana Zapparoli

CARTA 39 – De Mariana Paiva para Adriana Zapparoli

Adriana,

Você é esperta. Sabe que poesia se faz num blues, nas imagens em movimento, poesia é tão grande, né? Preto e branco e colorido, de perto e de longe, no bom e no ruim. Tem poesia até mesmo na dor, na dor mais profunda, naquela noite que eu gostaria de esquecer caso houvesse mesmo a “Eraser Inc.” como em “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças”. Não há. Vez por outra me confundo toda porque o que dói também brilha de tanta poesia e eu, pra ser sincera, preferia que não. Dor era pra ser só dor, crua, sem qualquer pirotecnia. Mas vem a poesia e invade tudo, eu vacilo. Você aceita de bom grado quando a poesia invade sua dor?

Daqui eu fico achando que você até gosta. As aves todas amontoadas, o que pra gente é dor pra outra pessoa pode ser uma festa. Isso é tão contemporâneo, né? Pra mim faz tudo sentido nesse 2020 tão esquisito: os abutres a ausência de cor o eco na voz. As casas tão vazias que podemos nos ouvir duas, três, mil vezes. Agora mais não mas houve um tempo em que o mundo parecia ter sido pausado. Alguém muito poderoso sem rosto e sem nome com a mão no botão de pausar, a gente infinitamente vivendo o mesmo dia esperando o instante de continuar. Quando vai ser? Como é o nome das pessoas que nunca conhecemos? Para onde vão as histórias de quem não tinha o nome no Google?

Nessas coisas de pandemia, uma amiga outro dia encontrou uns papéis de um rapaz perto da casa dela. Eram documentos solicitando auxílio-desemprego. Última remuneração declarada: R$ 150. Eu me arvorei pra ajudá-la a encontrar o rapaz: nada. Nenhuma rede social, nenhuma ocorrência nos mecanismos de busca. Como devolver o papel a alguém de nome comum, com milhões de homônimos espalhados pela internet, cada um com uma foto mais longe que o outro? Explico: os homens todos em fotos de cenários perfeitamente impossíveis para quem ganhou um dia R$ 150. Eu não sei, minha amiga, mas eu me senti bem ridícula. Eu procurava do jeito errado: era pra pegar o papel e sair pela rua, bater à porta do endereço na ficha e dizer: meu senhor acho que o senhor deixou cair isso aqui. Mas tem uma pandemia e então eu não fiz isso, fiz foi escrever ao RH da empresa que ele tinha trabalhado solicitando que entrasse em contato com ele, que o avisasse sobre o documento. Sim, um jeito ridículo. Vou deixar na conta da pandemia eu não ter resolvido isso da forma certa. Poesia também a gente acha quando é covarde?

Porque, veja bem, Adriana, medo todo mundo tem, e muito: uns têm mais de uma coisa, outros têm mais de outra. Medo também é poesia? Porque eu vi suas artes todas e fiquei achando tudo ao meu redor bom e poético, tudo que é colorido fica com uma certa aura poética se visto em preto e branco. Você já pensou que sorriso é pura poesia? E que com máscara a gente não vê sorriso?

Sorriso é colorido, e eu consigo pensar pelo menos numa centena de sorriso-poesia que eu queria ver agora. Da tela ainda é muito longe porque poesia a gente sente bem é com o corpo inteiro, da unha do pé ao último fio de cabelo, em gosto, em cheiro, em visão, em toque. Tem como escrever qualquer coisa nestes tempos sem falar em saudade?

Acendo velas incensos espalho lavanda acendo luzes coloridas do lado de dentro do peito para que o coração siga batendo junto com elas, fazendo festa nesse deserto, esperando que nasçam tímidas florzinhas que um dia vão tomar tudo de assalto. Rebeldes como precisam ser as flores, delicadas somente ao olhar, e duras, corajosas e mulheres, sim, flores-mulheres pra resistir a esse mundo de meu deus. Pra não deixar a poesia esquecida num canto qualquer, né, Adri, que sem ela é melhor a gente nem ir pra lugar algum. Já que agora tudo que era pouco parece muito, eu só defendo mesmo a poesia: afasto as notícias, as conversas que não dão em nada, os desmandos, os absurdos. De tudo eu só quero é a nuvem, o fugaz, o instante de poesia, a vida que pulsa

me desculpe pelo tom,
hoje acordei infinita

Mari

Imagem: Mariana Paiva
Registro do envelope da carta, feito durante transporte da casa da remetente à casa destinatária
Registro do envelope da carta, feito durante transporte da casa da remetente à casa destinatária
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