CARTA 48 – De Adriana Zapparoli para Jeff Vasques

Campinas, 20 de outubro de 2021.

Hoje o dia está ensolarado. Há COVID na espreita.

Prezado Jeff Vasques, como você está?

Escolhi essa manhã agradável para lhe redigir essas palavras. Estive em contato com o seu trabalho poético e suas palavras sobre o amor e passarin. Confesso que é um tema difícil a ser tratado por mim…

Do amor que, muitas vezes, apenas houve a chance de se ouvir falar. Do amor romântico, tão amor quanto os outros, mais amor do que esse que observamos na rotina e não vemos com a força que deveria estar presente. Sobre o amor de mãe e entre as pessoas. Sobre o amor fraterno. Sobre o amor ao Cosmo, ao que pode ser maior. Do amor envolto em escuros… Sobre amor-medo.

A vida passa em um relance e quase não a percebemos. Diga-me sobre suas andanças regadas com versos, conversas, distâncias-distintas levando poesia de encontro aos Hermanos. Confesso que os tenho uma grande admiração e minha segunda língua poética é o castelhano. Fico pensando sobre as paisagens que você encontra em seus caminhos de delivery poético, sobre as noites pelos arredores e há as culturas vizinhas, suas alegrias e tristezas. E há Cortázar.

Penso sobre sua produção artística, não menos poética, Jeff; sempre gostei muito de ver os espetáculos de atuação de palhaços… Palhaços afoitos nos sinais de trânsito de onde vejo desperta pelo vidro do carro. Eu os olho pelo retrovisor… Há uma memória afetiva nisso… Lembra meus pais me levando ao circo. E assistimos tudo sentados em uma improvisação de tábuas, comendo pipocas salgadas e jujubas.

As memórias afloram nesses tempos cínicos da COVID. E trago uma grande tristeza em meu peito por tudo que ela trouxe ao meio artístico. As noites sem dormir. As pausas. Os silêncios. As perdas. Ela nos rouba a todos indistintamente. Estamos esperando esperançosos que nova fase nos conforte. Como você tem lidado na sua rotina de amores com isso? Sabe, eu tenho pensado em escrever um livro sobre essa fase. Mas não sei como proceder. A realidade é que a poesia ainda não se fez corpo. Todos os dias olho ao redor. E tenho um pensamento de força. Amigos artistas estão vivendo de caridade, e isso me incomoda. Muitos na realidade desejam colo e remanso. De longe eu os observo … Muitos estão doentes e eu os entendo. Somos algodão entre cristais. Tento palavras de força, em vão.

Diga-me, a vida na kombi-casa? A kombi-casa lírica. Ela é colorida?

E na kombi-casa, mora um coração aflito de palhaço e suas piadas de oração em risadas perdidas de seu pai, aventuras de frutas e pedaço de pão. Mas é dia de sol e olhares perdidos e de bem-te-vis em fio de alta tensão…

Fico feliz por lhe ter encontrado,

Um abraço, há braço amigo,

Adriana Zapparoli

Prezado Jeff

Eu lhe envio mimos.
Uma imagem em quadro: arte digital de tempos aflitos…
O que você pensa sobre a poesia experimental

Tulipas em ventrículos
em jardim de tulipas negras e outras cores… e leonella e os átrios e os ventrículos… encontra-se agora, entre os anúncios luminosos, em liquens orgânicos, em musgo no ângulo urbano, em vespas de neon, em conversa venosa de assobio… encontra-se entre vários suicídios em ovários, entre bardo de pássaros, entre o sepulcro gótico do cemitério e sua capela (é sério), entre uma xícara de café e uma cigarrilha… de chocolate. e entre os átrios que latem e os ventrículos, sempre cardíaca, em peito. é o mesmo efeito: sempre são sonhos… e tulipas em ventrículos.

Imagem: Adriana Zapparoli
Imagem: Adriana Zapparoli / Ilustração: Sarah Bauer
Imagem: Adriana Zapparoli
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CARTA 47 – De Maria Teresa C. R. Moreira para Marcos Siscar

“Qual a distância certa da cidade?”

Foi assim, caro Marcos, que você começou a falar comigo! Não posso dizer que li seu livro, porque não o li… Gostaria que sim, mas ainda não. Você me falou, foi por “tabela”! Mirou em Antônio e acertou a Maria Teresa!Você bem “profetizou”: “como o outro vai reagir, o que vai ler nas entrelinhas, a gente nunca sabe”. Tão verdade!! Bem linda e assustadora, intimidante e estimulante verdade! E aqui estou, reagindo, escrevendo, arriscando…!

Sabe, Marcos, achei engraçado você ter-me falado tanto! Não, engraçado não é a palavra. Curioso chega mais perto. Curioso, surpreendente. Vou confessar algo muito, muito pessoal logo de cara, neste primeiro contato “não-por-tabela”: eu nos pensava super diferentes…!! Muito, mesmo! Que tonta, eu!!! Distraindo-me com aspectos tão da superfície, para chegar a pensar desta forma!! Não que não existam tais diferenças – ainda bem!! Porém, “más allá” do que nos difere, conforme você foi me falando em sua carta para Antônio, foi-se descortinando impensadas e imprevisíveis parecenças!!! Comum humanidade…!

É a partir deste campo comum que me aproximo de você, Marcos (nome de meu único filho homem, também!), com respeito e delicadeza, meio tateando, meio deslumbrando e vislumbrando, pensando e sentindo em voz alta – com o coração, muito mais do que com a cabeça. Que é assim que sei escrever…!

Quero te agradecer, Marcos! Agradecer por sua escrita, por esse ato de fé e provocação, de coragem e desespero, de persistência e “perscrutância”, de humanidade, ao qual você se dedica há tanto tempo, em tantas formas, da sua forma, sem fôrmas! Agradeço por pensar escrevendo, por escrever pensando, por viver escrevendo e escrever vivendo, se conhecendo a si – e a mim e a cada ser humano inescrutável!

Sou-lhe grata! Sincera, profunda, festivamente grata!

Sabe o que mais? Vou mais longe: Sou-lhe grata também por fazer essa Campinas e nosso país e o mundo todo melhor com sua escrita!!! Fui longe demais….?!? Não creio. Porque creio! Sou mulher de fé!

Permita-me, nessas linhas, entrelaçar raízes com você, neste solo ao qual decidimos ambos voltar, cada dia – seja o desta cidade, seja o da Poesia. Para semear, lanço-me, oferecendo a você este poema saído do forno neste instante:

Chegada à francesa

Como vai você?
Assim como eu, uma pessoa comum”
– nisso cria Marina Lima –
Nisso creio eu
Nem tanto
Em parte
Todos tão incomuns, únicos
Todos tão gente, humanidade

Como vai você?
Vai de “canoa furada, remando contra a maré”?
Irá você descosturando furos
Criando canoas e portos e quintais
Possíveis e/ou prováveis e/ou sonháveis
Em papel, nos papéis, nas redes?
Como vai?
Vai você?

Eu vou
Sou, estou
Vindo, ficando
Voando, plantando
Sangrando, gozando
Vivo.Viva!
Só não duvido da fé”.

Entre Marinas e Campinas
Nos cruzamos
– haja mistério! –
Tecemos destinos, trançamos destinos
(Disse você!)
É a Poesia
É a Poesia!

Como vai você?
Vamos?!?

Vamos nós! Com e sem nós, conclamados pela subsistência da Poesia – ou Poesia da sobrevivência… quem diria?! Haja mistério!!! Lindo isso! E há tantos outros mistérios , misteriosos, gozosos, dolorosos, luminosos…e me ponho aqui a pensar nisso tudo… e não tenho outro jeito senão o meu, de ir me derramando, sem imaginar de antemão o que é que vai sair exatamente….! Estou explodindo um tanto de conexões da Poesia com a sobrevivência, que deixarei pinceladas na esperança de que você pegue alguma linha e clareie a explosão….!

Penso, para dar o pontapé inicial, sobre a Poesia como este caminho privilegiado de sobrevivência humana e pessoal, nos propiciando reconhecer nossos processos e lutas, possibilitando nos solidarizarmos assim com o outro, todo outro… E/ou na Poesia como ferramenta ideal para alongar o olhar, que tantas vezes fica colado ao umbigo nosso de cada dia, causando deste modo um isolamento social ainda mais sério e desastroso do que este pandêmico, já tão sério e desastroso…! Penso na Poesia como uma ajuda propícia e eficaz para nos ajudar a gritar, a lembrar que somos povo, todos interligados entre nós e com esta Terra que nos acolhe… na Poesia ajudando a resgatar a consciência de que somente sobreviveremos – não somente a esta pandemia, mas enquanto Humanidade mesmo, neste planeta – se nos entendermos todos sendo fundamentalmente interdependentes e, assim, olharmos muito além de nossas próprias janelas e rótulos e categorizações…!! Aliás, escrevi um pouco sobre isto neste poema (*):

Olhar e ver

Alongar o olhar
Para poder ver
O que vai dentro
E mais além
Das janelas daqui
Sempre tão fechadas
Sempre embolorentas

Alongar o olhar
Para ouvir bem
Cada nota surda
Aguda e sangrenta
De dor e de amor
Que compõe a heróica
Sinfonia do hoje

Alongar o olhar
Tamanho de horizonte
Para abraçar o mundo
Tão denso, tão amplo
Regaço de pássaros
Abridor de comportas
De sorrisos férteis

Alongar o olhar
Para espichar a vida!

E os pensamentos vão se unindo e formando elos, e multiplicando e unificando…. e pus-me a pensar que Poesia como sobrevivência pode ser, exatamente (embora não haja quase nada de exato na Poesia!!), a garantia da sobrevivência da Poesia…!

(eu havia te prevenido que iria pensar alto…!)

E a explosão dá um salto para outro campo: enquanto neste cenário que vivemos ainda de pandemia e de eleições locais, não consigo deixar de pensar também na sobrevivência de quem vive de Poesia (pessoalmente, uma luta renhida e, historicamente, uma grave questão de mil ramificações…)… E aí se abre todo um campo doloroso, complicado, social e político…

Este seria, talvez, material para tantas prosas e versos, quem sabe no seu ou no meu quintal…! Entrelaçando raízes e voos, em comum ou não, proseandopoetisando, construindo e lutando, cada um a seu modo e em seu tom…!!

Aliás, isso me lembra outro poema (**) que deixo também como material para combustão:

Voos e pousos

São tantos caminhos
Tantas pousadas
Entre um e outro voo
Meu e teu
Mas a força
A grande diferença
É escolhermos
Pousar juntos
Sustentarmo-nos
Apoiarmo-nos
E
Quem sabe
Voarmos juntos
Voos novos
Lindos
Livres e altos
Marcando céu e terra
Com nossa passagem!

Com esta jogada de ideias no ventilador desta carta, o coração acelerado por tanta explosão e um sentimento profundo de gratidão pela oportunidade in-crível de comunicar-me com você, Marcos, vou encerrando a conversa. Quem sabe um dia…!

Abraços poéticos e, por isso, profundamente humanos,

Maria Teresa!

(*) – do livro 50 Faces da Menopausa
(**) – publicado em minha página no Facebook algum dia…!

Imagens: Maria Teresa C. R. Moreira
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Carta 46 – De Mariana Paiva para Samuel de Monteiro

Samuel,

Como é ter nascido num sítio? Fiquei abismada (no sentido mesmo de cair num abismo) de saber isso de você. É nascer onde já se vai continuar, sem interromper nem se arvorar em fluxos desnecessários depois da alta do hospital. O jeito que a gente nasce muda muita coisa na vida da gente. Eu acho. Aí sou eu mesma teorizando porque, né, se a gente não tiver liberdade pra teorizar um pouquinho tanta palavra serve de quê? Apois, de nada.

Novidade eu tenho pouca pra contar. Tenho desviado muito habilmente das notícias pra poder lidar com minha própria dor da perda. Então não sei de jornal de rádio de notícia de última hora nada. Se vier o meteoro morre todo mundo sem direito a muita conversa, porque eu mesma só vou descobrir na hora da explosão. Eu, que sempre quis saber de tudo, agora corro do que tiver de novidade. Então vou falar direito: novidade eu tenho pouca pra contar e ando mesmo sem querer saber. Minha avó morreu, Samuel. Ela, que era viva, muito viva, mais viva que eu, você e todo mundo mais. Uma pandemia e um vírus correndo pelo corpo dela, fazendo estragos irrastreáveis pela medicina. E foi assim: a dois dias de ter alta do hospital ela se foi. Um trombo no coração. Eu entendo um pouco porque ela era muito viva e qualquer coisa que atrapalhasse e interrompesse o fluxo das coisas ela não tinha mesmo como gostar.

A vantagem de ter palavras é que a gente pode recontar as coisas, reescrever o que dói muito de um jeito que doa um tiquinho menos. Procuro lembrar disso todo santo dia, que eu tenho palavras, apesar de ter também muita saudade, e saber que PALAVRAS NÃO RECONSTROEM PESSOAS. Dessa parte eu não gosto mas confesso que não tenho muita opção a não ser seguir, então que seja sem saber muito – ao menos por esses dias – as notícias desse mundo. Os ratos todos fora dos bueiros, andando pelas ruas, verbalizando suas porcarias. Por que não se recolhem todos, por que não ficam de novo vexados de dizer o que pensam?

Então isso é 2020. Pelo menos não é culpa de ninguém como seria se fosse a terceira guerra mundial. Nesse ano a gente se consola com o que podia ter sido de pior. Por aqui eu grudo na arte mais que nunca porque sem ela, olhe, a gente não encara esse mundo não. Palavras sendo mãos dadas, música sendo abraço, beleza vista pelos olhos sendo como uma pele encostando na outra. 2020 e mesmo assim a primavera veio, você reparou?

Aqui mesmo o jasmim-manga está mais bonito que nunca, parece até que sabe que daqui de onde escrevo toda hora eu lhe espio, é bonito e meus olhos que quase não saem de casa agradecem. Enquanto te escrevo Caetano canta Trilhos Urbanos, que é também o nome de uma padaria em Santo Amaro da Purificação, lá na minha Bahia, que vendia uma massa de pizza pronta bem gostosa. Você conhece o recôncavo baiano? É um mundo à parte e bonito, o comércio nas ruas, todo mundo se falando, aquela confusão boa de rua de interior. Gosto tanto. Aliás preciso te dizer que dei um Google em sua cidade natal, Monteiro, e achei que ela tem um jeitinho de Santo Amaro, as luzinhas altas, os canteiros, a igreja.

Esses dias vi meus amigos aqui no jardim de casa. Chegaram, fazia sol, sentamos longe, todo mundo de máscara, e ficamos conversando. Só que aconteceu uma coisa que nunca rolou antes: silêncio. Muito silêncio. Que era um pouco o corpo de cada um trancando a natureza que nem menino birrento, zangado de não poder abraçar, de querer perto e ter que ser longe. A boca fez greve. Todo mundo calado, meio de cara amarrada por baixo da máscara. O mundo inteiro sendo aquele instante ali congelado no jardim de minha casa, o sol, a grama, as cadeiras tão afastadas, a pele querendo tocar querendo tocar querendo tocar. Até que Jéssica falou que daquele jeito era ruim, todo mundo concordou e as palavras voltaram. E o sol ali, alto, segurando a onda da gente.

Quantos anos cabem num ano? Você também tem a impressão de que antes era em outra vida? Aproveite e me conte alguma coisa sobre cordel, eu gosto mas sei tão pouco, e é tão bom saber mais das coisas boas. Em resumo, é isso: quero saber mais do bom e menos do ruim. Se der pra escolher, minha opção é essa aí

um abraço,

Mariana

Imagem: Mariana Paiva
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CARTA 45 – De Jeff Vasques para Maria Teresa C. R. Moreira

Ao abrir o silêncio que sela estas palavras, Maria, que o som se faça claro. Esse sopro da graça: dar luz aos sentidos. E que o verbo soprado em teus ouvidos, poeta, se faça carne, algo de afeto que nos habite. E que seja bom.

Que alegria, Maria, saber que em Campinas há mais e mais mulheres hasteando suas vozes, entoando palavras de força e beleza, abrindo rumos, clareiras poéticas nesta selva de homens. Há tantas mulheres sem voz e tantas vozes sem ouvidos, não acha, poeta? Eu acredito que a palavra ainda está por ser liberta. Palavras de negros, pobres, gays, lésbicas, mulheres, travestis, indígenas. Tanta fala represada por tantos séculos, as bocas secas, esse deserto… Não é também teu desejo, Maria, que os diques todos se rompam? O mundo inundado por novos olhares, sensibilidades, metáforas?

Mas sei, poeta, ainda não são tempos de dilúvio, quanto mais neste país governado pela misoginia encarnada. Na literatura, a situação é, também, “braba”, e, se me permite uma digressão meio acadêmica, uma pesquisa da Universidade de Brasília denuncia como o cânone é dominado em sua grande maioria por homens brancos do eixo Rio-São Paulo e com cargos prestigiosos como colunistas, redatores, professores universitários. Parece que pra eles (me incluo) é meio caminho andado, não, Maria? Adélia Prado já nos dizia, evidenciando o descompasso entre ser homem e mulher na poesia, que ao contrário de Drummond, que, ao nascer, recebeu de anjo maldição fácil, ser gauche (algo como desajustado, em termo chique), a ela restou mesmo ser triste sem pedigree e carregar bandeiras, cargo pesado pra mulher, espécie ainda envergonhada, segundo ela. Desses pesos, Maria, dessas bandeiras, você sabe bem melhor que eu, por isso mesmo habita essa luta herdada de outras companheiras, como você diz no poema “Herança Feminina”:

…Mulheres ancestrais,
O que me deixaram?
Que parte de vocês
Ainda carrego
E perpetuo?

Quero sua força
Sua coragem
O pioneirismo!
Quero sua beleza
De alma e corpo
Quero sua energia
Sua fé, fidelidade…

Esse trecho dialogou, aqui em meu peito, com outro de Gioconda Belli, essa poeta lutadora da Nicarágua, conhece?, que há algumas décadas já mandava “Conselhos para a mulher forte”, alertando que se preparasse para a batalha, protegendo-se com palavras e árvores e invocando, como você, a memória de mulheres antigas. Apesar dos avanços da luta feminista, são tempos ainda inquisidores para as mulheres e por isso te pergunto, Maria, como tem sido, afinal, afirmar-se mulher e poeta em Campinas?

Sei, também, que não só das mulheres ancestrais vem o apoio, você se aninha e se fortalece junto às suas contemporâneas: se não me engano, há um coletivo de mútuo apoio, espaço de troca e divulgação de suas obras e, assim, vão cavando juntas o ingresso e a sobrevivência no universo literário. Que bonito isso! E necessário! Gostaria de saber mais dessa iniciativa, Maria, sobre esse Mulherio das Letras… que creio muito nisso, da arte se fazendo acessível e de todas, não de poucos, pra poucos. Compartilha disso?

Eu vejo a poesia como um direito, Maria. Direito a alucinar a voz na garganta do futuro, de fazer da palavra uma bandeira, um espelho, uma arma, um bando de andorinhas na página, novo rumo. Mas nos privam de seu acesso e da alfabetização artística necessária. Nos aprisionam a palavras mudas, burocráticas… nos ensinam a leitura única: o mundo que sempre foi e sempre será. Imagine, Maria, se cada um e cada uma pudesse usar da língua como ferramenta de assombro e investigação de si, do mundo? Como alma de fogo atirando contra ditaduras e dicionários? Ou como fogueira dos encontros, em que mulheres, donas de sua palavra, falariam de si para si e para todos? Seríamos, então, não só um risco no papel, mas também um risco à vida-miséria em que o mundo rebenta… não acha? Você, Maria, que carrega a formação de pedagoga, pensa em espalhar ainda mais a poesia a outras pessoas? Uma educação pelo verso?

Mas sei que, por ora, somos poucos. E mesmo os poucos artistas, como eu e você, que vão conquistando na lida cotidiana um território à palavra, mesmo esses são atacados. Vem sendo cada vez mais recorrente a falta de apoio do Estado e os casos de censura às artes (e até mesmo à ciência, em pleno XXI). Nestes tempos em que sobrevivemos, Maria, são muitas as pandemias… o vírus não tem culpa por nossa ignorância… por esse ódio que se espalha contra o outro, contra aquele que não-eu, que não dos-meus. Nos desconectamos (e não há banda larga que resolva isso!). Os poetas, certamente, se ressentem… a palavra acesa ainda pode iluminar o caminho, Maria? Aproximar mundos tão distintos? Dizer um pouco desse outro-tão-eu? Pode a arte resgatar o sentido profundo dessa “Terceira pessoa do plural” e nos fazer comunidade, como me inspira estre trecho de outro poema teu?

…Este caminho
não o caminho só!
Corremos ladeira abaixo
escalamos montanha acima
quanto mais nos sabemos
juntos, coletivamente
fazendo História…”

Vejo o exemplo do teu livro de poesia, “50 tons da menopausa”, que aborda esse período tão único da vida das mulheres. Não sei se, antes, em língua portuguesa, esse universo de vivências femininas havia sido tematizado. E com isso, poeta, se amplia o conhecimento, se ampliam os afetos, o encontro (imagino quantas outras te escreveram ao se verem em tuas palavras!), se amplia a voz da mulher inteira, integral, e não a que se vende nas capas de revista. Sei que a poesia, esse pó nas engrenagens do mundo, pode pouco, mas miúdo, assim, passa pelas grades, pelos vãos, se infiltra nos pulmões, nas consciências, nos corações, e vai agindo (antivírus?) e ampliando a resistência… Você sente, poeta, essa potência na experiência comum, comunitária, dos teus versos?

Apesar do contexto tão complicado de isolamento, Maria, espero que a poesia siga destampando teu peito, te fazendo “do tamanho do canto da cigarra” e que cantando alto convoque outras tantas pra cantoria. (Que zunido assim é prenúncio de chuvas, símbolo de renovação… e que inundem este sertão!). Faz escuro, mas ainda se canta, como nos ensinou Thiago de Mello. E com ele e contigo e com tantas e tantos que seguem cantando, mesmo que o dia ainda não se faça claro, reafirmo, Maria:

…minha fé continua forte
sigo crendo
na existência de vida
antes da morte!

Abraço fraterno,

Jeff

(primavera em pandemia, 2020)

Imagens: Jeff Vasques
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CARTA 44 – De Marcos Siscar para Mariana Paiva

Campinas, 20 de outubro de 2020.

Querida Mariana,

Calculo que nos conhecemos há 5 anos. Andei procurando mensagens antigas na minha caixa de e-mail, até me dar conta que nosso primeiro contato tinha sido pelo Messenger. Na impossibilidade de encontros, de lançamentos, de passeios em família, a ocasião de lhe enviar uma carta cai como uma luva!

Em setembro de 2015, no Messenger, você se apresentava assim: “Oi, Marcos! Tudo bem? Sou Mariana, escritora também – estamos, aliás, na mesma exposição no Museu da Língua Portuguesa.”. Em geral, as pessoas preferem se apresentar pelo registro da carteira de trabalho, e não pela condição de artista. De repente, chegava você em forma de decassílabo (“Sou Mariana, escritora também”). Mas nessa expressão “escritora também” tem alguma outra coisa que me chama ainda mais a atenção, porque coloca em primeiro plano uma espécie de proximidade, de camaradagem.

Na sua fala, ser escritora parece natural. Tão natural quanto é (ou costumava ser) ir e vir, tão natural quanto é (ou deveria ser) sorrir. Não só escrever é natural, na sua frase, mas a identificação com a literatura funciona como modo de relação e compartilhamento. Você valoriza o que você faz ao valorizar o que faz o outro. Tem uma generosidade específica, que não é simplesmente passiva (como quem constata a coisa boa do outro), mas que introduz no contato interpessoal uma qualidade comum, uma reciprocidade virtuosa.

Claro que ficou mais fácil ler essa frase depois que nos conhecemos pessoalmente. Hoje, sou capaz de imaginar a forma característica como você diria: “Sou Mariana, escritora também”. Há 5 anos, marcamos um encontro na Unicamp e você me levou alguns livros que traziam sua marca de pertencimento ao espaço cultural da Bahia. Foi Oswald de Andrade que criou o bordão “A alegria é a prova dos nove”, mas foi o baiano Caetano Veloso quem deu a isso um sentido compreensível para mim, socialmente, esteticamente, existencialmente. Acho que você aplica como ninguém esse imperativo da alegria ao espaço da criação e da convivência. Busca transformar a alegria em coisa fácil, viável de alguma forma, mesmo que em algumas situações ela pareça complicada, ou mesmo impossível. E faz isso, o que é ainda mais admirável, sem parecer autoritária.

Acho tocante como essa “sabedoria” (eu chamaria assim) se conecta com a busca da “liberdade” pessoal, da qual você fala nos seus escritos. Foi ela, aliás, que a trouxe até Campinas, um lugar totalmente desconhecido, bem longe do mar, do qual você “não sabia nada” e “nem quis saber”. Não acredito em destino. Tudo o que fazemos é resultado de escolhas. E as nossas escolhas (consideradas as limitações que as restringem, e somadas a elas alguns “acidentes” de percurso) escrevem a narrativa da nossa vida. Fico pensando que encarar esse vazio diante de nós (como o escritor encara a página em branco, ou a tela em branco do computador) é muito mais animador quando é feito com liberdade e com alegria.

Claro que a liberdade envolve uma série de consequências, de responsabilidades. E claro que a alegria envolve sempre algum abandono: cada decisão implica em melancolia por aquilo que se deixa, transformado em passado, e por tudo aquilo que ela bloqueia no rol de possibilidades do futuro.

Coisas desse tipo parecem fervilhar nas entrelinhas de Vermelho-vida (Editora Patuá, 2018), narrativa do seu encontro com Campinas, que é uma espécie de preâmbulo a outras decisões de vida que a fixaram na cidade. Peguei o livro hoje pra reler. Acho muito interessante que tenha conhecido Campinas como uma cidade literária, ao fazer uma residência artística na Casa do Sol, de Hilda Hilst. Campinas gosta de ser vista como polo tecnológico ou universitário, mas raramente se define como uma cidade literária, que tem uma relação especial com a literatura.

Desde que a conheço, sei que você faz muita coisa, além de escrever livros: é jornalista, pesquisadora, publicitária, produtora e militante cultural, e até compositora. Mas seu relato da experiência na Casa do Sol mostra como a “literatura” (que vou chamar aqui, por interesse próprio, de “poesia”) é importante nessa experiência de liberdade. A poesia é uma forma de estar no mundo, de habitar o mundo. É na poesia que “o mais ínfimo grão de poeira é capaz de mudar tudo”. Aliás, belo modo de falar da experiência de liberdade! O que está em jogo na maneira que temos de ver um lugar, de habitar uma casa, é essa possibilidade de “mudar a vida” (como dizia Arthur Rimbaud).

A casa a recebe, mas é você que adentra a casa, desde a chegada, com “olhos compridos em frente ao grande portão de ferro”. A casa tem suas memórias, seus baús, mas você é capaz de ler a memória da casa em outros recipientes, em outros armários. Num certo momento do livro, se referindo a Hilda Hilst, você diz que o “baú que fica no escritório não é um lugar seguro para guardar” segredos pessoais, e acrescenta:

O armário da cozinha talvez. É que pouca gente vai atinar em contar sua história pelas louças que as portas de madeira guardam, Hilda […]. Por isso lá é um lugar bom e seguro, porque estamos tão acostumados a bisbilhotar papéis mas ainda não pensamos em contar a história de alguém pelas xícaras, pires, pratos de sobremesa, travessas”.

A memória das louças… Será que é o caso de pensar numa habitação poética que carrega a perspectiva da mulher? Já há algum tempo, você organiza ciclos de leitura de escritoras mulheres, que é um lado muito interessante da sua relação com a cidade e com a literatura. De resto, percebo que, em Vermelho-vida, você desloca a casa, ao ser deslocada por ela. Dá voz à memória da casa, mas também vai incorporando, ao longo do relato, a voz (ou as vozes) da casa, junto com os fantasmas que a habitam.

Ou seja, a casa não é só um receptáculo, ela deve se sentir habitada, repintada com seu vermelho-vida. Ou com uma cor qualquer, desde que cada cor esteja impregnada do lugar e da circunstância, desde que sejam cores vivas.

Muito bonita a forma como você descreve a brevidade da beleza e a recusa da beleza de se deixar reter, de se deixar aprisionar. É uma memória de criança, com você na praia:

então avistei uma flor. […] Era tão colorida e se oferecia a mim de tal forma roxa que queria tê-la ainda que por um segundo. Num átimo de instante a flor em minhas mãos. Eu largando a flor. A beleza me queimava a palma, a beleza insustentável de uma água viva.

A beleza, que é lugar da experiência de liberdade, está nessa miragem da forma (uma flor imaginária), ou talvez até na indefinição da forma (como a água, ainda que em modo animal: uma água-viva). Ali está a coisa viva, que brilha com cores vibrantes, com cores vivas, e que queima ao ser tocada.

A metáfora lembra Clarice Lispector, mas é, sem dúvida, de Mariana Paiva, com todas as suas cores.

Muitos abraços para você e para Cristiano!

Marcos Siscar

Imagens: Marcos Siscar
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CARTA 43 – De Samuel de Monteiro para Adriana Zapparoli

Campinas, dia duzentos e sete, do período da quarentena, do ano dois mil e vinte, depois de Cristo.

Olá minha amiga de poesia, Adriana,

Um (desejo de) abraço sertanejo

Há mais de duzentos dias que estamos aqui, convivendo com esta pandemia. Alguns, na linha de frente, como os profissionais da saúde e socorristas. Outros nos dando suporte e alento, como os bravos entregadores urbanos, porteiros, coletores dos lixos que produzimos…

Por diversas vezes me pego pensando no volume de lixo que produzimos nestes tempos. De um lado o lixo, do outro, os intrépidos coletores. Entre um e outro, os abutres urbanos, que se aproveitam das incertezas.

Temos aqueles e aquelas exercendo seus ofícios como possível. Professores, professoras, que se desdobram na transmissão, agora literalmente, do saber. Nós, os poetas e poetisas, esforçamo-nos para tornar os dias melhores. De alguém. Os nossos dias, também.

Poeta sente, não é mesmo Adriana? Sente de forma diferente e traduz em palavras aquilo que muitas vezes é intraduzível. Você, que além de poetisa, também é tradutora, tem essa consciência do que é levar a palavra alheia, com o sentido que este, ou aquela, quis dar-lhe na escrita original.

Nós, que escrevemos, nos colocamos adiante dos sentidos das palavras. Elas dizem aquilo que queiramos que ela diga. Ponto final.

Li um poema seu, outro dia. Gosto da forma como escreve, confesso. Interessante que são tão distintas as nossas escritas e ainda assim somos poetas iguais. Cada qual usando a palavra ao seu modo.

Em seu “Rubro Cântico”, viajei numa noite qualquer entre Monteiro e Sertânia. Lá, entre o Moxotó e o Cariri Ocidental Paraibano. Entre a Paraíba e o Pernambuco. Assim como me sinto agora, escrevendo para você. Cruzando as fronteiras entre uma e outra cultura. Um cordelista sertanejo, vindo da terra de “Zabé da Loca”, escrevendo para uma poetisa da cidade grande, com sua escrita moderna e instigante. Zabé foi uma mulher guerreira e atrevida, que criou seus filhos ao som do pífano, que tocava tão bem, e viveu mais de um quarto da sua vida numa loca. Ela nos deixou, há pouco mais de três anos. Após noventa e três bem vividos. Sabe, Adriana, eu costumava visitá-la todas as vezes que ia a Monteiro. Tomávamos o seu café, saído de uma garrafa azulada, envelhecida pelo tempo. E não sei por quê, você me lembrou Zabé. aquela sertaneja que fazia o que amava e queria, do seu jeito. Você me parece assim.

No momento em que escrevo para você, uma chuva fina visita a minha janela e algo me diz que você gosta da chuva. Preciso confessar que a chuva para nós, do sertão, tem um quê de divino. Talvez por ser tão escassa em nossa terra, por movimentar a subsistência de tantas famílias nos sítios espalhados pelas cidadelas do sertão. Eu tenho alguns cordéis sobre a chuva. Num deles eu apresento “A Lenda dos Cavaleiros da Água”, onde eu conto a incrível história de três cavaleiros que chegaram numa cidade do Sertão e fizeram um acordo com Deus. Ele deveria enviar uma nuvem cheia e aos cavaleiros caberia a missão de laçar, amarrar e furar com uma flecha essa nuvem gigante, para abastecer todo o vilarejo. Percebe-se a importância do feito, nas estrofes que descrevem a celebração à chuva:

O açude ficou cheio
A cacimba transbordou
Foi tanta água que veio
Que o povo comemorou
Criançada no terreiro
Lambuzada no barreiro
E a senhora emocionada
Agradecendo ao bom Deus
Que molhava os filhos seus
Com a chuva abençoada

Foi grande a felicidade
Naquela terra distante
Só se ouve na cidade
Que água, caiu bastante
Dizem que três cavaleiros
Da chuva, os mensageiros
Que cumpriram esta missão
A nuvem toda rasgada
Sua água derramada
Inundando o meu sertão.”

Para outros, o céu nublado ou a chuva fina, pode representar tristeza. A vida é assim mesmo.

Sabe, Adriana, confesso que gostaria de saber mais de você, além do que leio em seus escritos. Além da complexidade que as palavras escondem. Por exemplo, o que sente neste momento cheio de restrições, isolamentos e distanciamentos? Como é para você ser mulher, num mundo tão machista? Sua escrita entrega um pouco sua luta e sua visão, é claro. Porém, adoraria ouvir de você, Adriana e cidadã.

Ah! Me conte como está o porteiro daquela guarita, do canto em que você mora.

Mudando de assunto, tem sido dolorido demais ver a mata queimando, os índios morrendo, as periferias sendo ignoradas e, como poeta, só me resta escrever sobre tudo isto e, sim, denunciar, enquanto houver palavras e forças. Faz-se necessário, além de denunciar, trazer alento, esperançar. Outro dia escrevi sobre isto num dos meus cordéis, em que digo:

Não há sofrimento eterno
Nem pra sempre dura o mal
Se você for persistente
Logo muda o seu astral
Simplifique a sua vida
Dando a importância devida
Pra que o for essencial”

Simplificar a vida deveria ser uma busca incessante do ser humano. Aproveitar o dia e colher aquilo que ele nos reserva. “Carpe Diem” deveria ser um mantra diário.

E eu encerro este “Meu cordel da esperança”, assim:

Vamos aprender de fato
Com toda esta mudança
Olhar para o nosso irmão
Partilhar nossa bonança
Pra ser feliz de verdade
Perceba a simplicidade
Do meu cordel da esperança.

Com estas linhas singelas, me despeço de você, com aquela vontade boa de saber notícias suas. Esta carta, quando lhe visitar, já terão transcorridos alguns dias, entre a escrita e a entrega. Entre o pensamento que a gerou e a emoção que chegou até você. Entre os pingos de chuva que gotejam em minha vidraça e os raios de sol que adentram a sua janela. A carta nos ensina a arte da resiliência, da paciência, do sentir, do escrever emocionado à espera do eco que reverberará noutra ponta deste universo.

Então, minha amiga (espero que me permita tratá-la assim), desejo profundamente que esta carta ecoe em seu coração todo o carinho, poética e um desejo fraternal, de que tempos melhores façam parte dos seus e dos nossos dias.

Até Breve,

Com um abraço esperançoso do seu amigo,

Samuel de Monteiro, cordelista do Cariri Ocidental Paraibano, vivendo em Campinas.

Imagens: Samuel de Monteiro
Clique aqui para ler (ou ouvir) a resposta de Adriana Zapparoli a esta carta.