Carta 1 – De Rafa Carvalho para Lucinha

Campinas, quarentena de 2020.

Querida Lucinha,

Tomara Deus esteja bem. Você e as crianças. Fico feliz da gente poder falar. E de poder começar uma carta dizendo: tomara Deus. Você sabe que eu saí do bairro… mesmo estando aí pra sempre… né? E aqui fora eu convivo com pessoas que não creem em Deus. Mas também com muitas que acreditam, sim. Só que é diferente, Lucinha. Ruim de explicar com palavras. Mas parece que em alguns lugares do mundo, acreditando ou não, Deus é sempre menor que nós. Aí no bairro eu fico triste com o que algumas pessoas, algumas igrejas com seus donos, têm feito com Deus. E mais que isso: com o povo nosso. Mesmo assim, sinto que em nossa comunidade ainda podemos ser pequenos. E Deus… ainda consegue ser mistério. Aquilo que não sabemos, mas queremos que seja bom. Melhor do que tudo o que vivemos até hoje.

Por aqui tem coisas que não vejo mais: criança brincando na rua, chuva de aleluia, bunda de içá… humildade. Pra mim, acreditar sem saber direito sempre foi isso. Tem gente que acha bobeira, que tem gente que vive passando essa gente crente pra trás. Mas eu ainda acho que se o coração tá zeloso, batendo por paz, dignidade… e sem querer atrapalhar ninguém… mesmo que sejam canalhas com a gente, tá tudo no jeito. A vida é zica mesmo, Lucinha. O mundo gira… uma hora chega a hora de tudo. E ainda vai chegar o tempo da gente se revoltar, amiga, pode escrever. Mas a gente precisa tá mais reunida antes. Cabeça e peito no lugar. Convivendo pelo certo sem fitas erradas. Fazer que nem na várzea: botar a bola no chão, erguer a cabeça, calmar o jogo, agir como time. Ou todo mundo ganha, ou todo mundo perde. Se não for assim fica tudo empatando mesmo. Um dia a gente ainda toma o apito do juiz, Lucinha. Até lá: fé e esperança. Disciplina na conduta de si. E tomara Deus.

Saudade do nosso pagode, né?

Sabe, Lucinha… vocês sempre acreditaram me chamando de poeta pelo bairro. Muitos nem fazem idéia do que significa isso… poeta faz o quê mesmo? Vive do quê, um poeta? E eu tô ligado que muitas de vocês jamais abriram um livro. Tô ligado que muitas de vocês até aprenderam a escrever, mas já nem sabem mais. É porque a oportunidade real nunca foi dada, Lucinha. Não tem nada pra se envergonhar. E eu acho bonito, como vocês acham bonita a poesia, mesmo pensando que não sabem o que ela é. Como vocês me chamam poeta com gosto e orgulho… mesmo cheias de dúvidas sobre o que isso quer dizer à vera.

E a vera é que todas somos, Lucinha. A poetada taí. Viu? O carrinho de lata de sardinha com roda de tampa que o Murilo pega lá no bar do Zé Preto e faz: é poesia. O sorriso e as tranças da Isabela: poesia. Você desenrolando a sobrevivência da família e sambando de olhos fechados num sábado por mês, com um copo da cerveja mais barata na mão, como quem reza pra alegria ser possível pra gente, mesmo com toda essa luta: é uma puta poesia, Lucinha.

Pra mim só faz sentido ser chamado de poeta por vocês, se vocês aceitarem que eu também lhes chame de volta. Nóis tamojunto, Lucinha… e não tem nada errado nessa frase. A poesia é livre. Livre como nós nascemos pra ser.

Agora, do que vive o poeta? Cê sabe, né amiga… o poeta aqui já foi motoboy, servente de pedreiro, garçom, professor de karatê no clube da polícia militar ali embaixo, guia de gringo, pintor de barco, demolidor de casa, professor de escola, massagista, trabalhador rural… entregou papelzinho na rua, catou coisas nela pra vender no ferro velho… E por aí vai.

Hoje estamos aqui… recebendo o auxílio emergencial do governo. Eu e você. Fiz uma horta no quintal de casa, pra ter mais comida. Queria fazer umas aí, nos terrenos baldios ali na baixada… pra todo mundo cuidar e colher. O que você acha? Parei de comer às segundas e quintas. Fico vendo a Sa grávida e as crianças comerem, lembrando que meu avô fazia isso, na caatinga baiana da seca e das vacas magras. A prefeitura soltou uma ajuda pros artistas, que é cheia de burocracia, não dá conta da emergência nem no tempo e nem na grana… e mais parece uma exploração do que apoio.

Mas seguimos com fé, né? Viver segue sendo um presente. E o que eu quero dizer com tudo isso é que: alguns de nós até vão conseguir começar a viver desse trabalho formal… artístico. Com textos, livros, quadros, fotos, filmes, músicas, aulas, shows, performances, cursos, apresentações, essas coisas. Talvez aconteça comigo até. Faz quase dez anos que, entre um bico e outro por fora, eu vivo assim. E nos últimos três eu só vivi disso, sem os bicos. Mas essa vida não me faz melhor do que todas vocês, Lucinha. A arte e a poesia podem estar em tudo. Precisam estar em tudo. E todas nós, juntas, devemos lutar pela vida, dignidade e bem-estar de todas.

Saudades daquele caldinho de mocotó com farinha, limão e pimenta, né? Das paneladas de graça no campinho, depois do jogo…

É uma pena que tivemos que adiar o início do nosso Rolê Domésticas… nossa roda de leituras com mulheres trabalhadoras da limpeza. E eu sei o tamanho do desafio, Lucinha. Sei o quanto o livro assusta… o quanto parece que não é pra nós. Sei da preguiça que dá, do medo e o receio. Sei das confusões que nos forçaram com a história. E que é difícil ter tempo pra tanta demanda… trabalhar fora de casa, dentro de casa, cuidar sozinha das crianças… sei que o tempo falta e que sentar pra ler um livro com as amigas, conversar sobre esses textos, passa longe das prioridades. Mas sabe… esse pode ser um caminho pra gente aprender a acreditar nas coisas com menos inocência, Lucinha. Pensar com a nossa cabeça e não com a da Globo ou da Record. Não com a do pastor, pois infelizmente nem todo pastor é certo, Lucinha. Não com a do presidente, Lucinha… que nem cabeça tem. Nem com a dos seus filhos, um mais perdido que o outro. Ou se baseando nas notícias que invadem todos os dias esse celular, Lucinha. Nunca foi fácil saber o que é mentira e o que é verdade, minha amiga. Mas agora anda ainda mais difícil. Pensar com a nossa cabeça… escrever a nossa própria história… sem deixar que escrevam por nós, omitindo fatos, corrompendo cursos, transformando nós em números, estatísticas, força de trabalho apenas, sem direitos a uma vida humana e plena.

Aqui fora o pessoal além de parecer maior que Deus, também costuma falar bem mal da novela, sabe Lucinha? Do fluxo, o funk, o pagode… daquele sertanejo que cê tanto gosta. Do tipo de mensagem que você ama receber e compartilhar no zap, naquelas correntes, frases de efeito e fotos ou vídeos cheios de corações e muito motivacionais. Tudo isso tem o seu valor, Lucinha. E não é justo que inferiorizem a gente que gosta dessas coisas. Mas o mundo é mais, sabe? Tem mais pra gente conhecer e reconhecer, Lucinha. Tem novelas muito boas, outras muito ruins… e eu sei o quanto todas elas viciam. Mas vai ler “Quarto de Despejo”, Lucinha. Você vai ver quando a gente ler. Quando a gente se encontrar com a Carolina Maria de Jesus, à Conceição Evaristo… e outras tantas mulheres e homens, vivas ou mortos, do Brasil e de fora. O quanto pode viciar também, amiga. A gente pega gosto.

De repente a gente larga o celular e entra no banheiro com um livro!

E também não é sobre o livro esse papo, vê Lucinha? É sobre a vida… nossas lembranças, a memória do nosso povo, as histórias que temos pra contar, legados que queremos proteger, consequências que ainda vamos transformar pra melhor… calmar o jogo, amiga. Usar o campo todo. Ir além dos alambrados. A Isabela pode ter a mesma profissão que você, Lucinha. Digna. Mas ela também pode ser professora, advogada, escritora… presidenta do Brasil. Como for, Lucinha, ela merece ser feliz, poeta… ter sua existência reconhecida e festejada por todos. Ela pode crescer um tanto mais e enfim achar um mundo um pouco menos injusto que esse seu, amiga. E somos nós que podemos ajudar nesse caminho…

Ler o mundo, Lucinha. E também escrevê-lo, tá ligada? Do jeito que a gente sonha. Não solta da minha mão, por favor. Essa pandemia vai passar… velhos problemas voltarão, novos vão surgir. E a gente precisa seguir resistindo, sobrevivendo. A poesia também, minha poeta.

Manda um beijão pra todo mundo aí no Cafezinho, viu? Diz pras crianças que eu sou fã delas. E da mãe delas também, Lucinha. Espero a nossa Rolê em breve! E ainda conto com vocês pra um dia formarmos um mundo só de poetas… Tomara Deus.

Sempre nosso,

Rafa

Imagens: Rafa Carvalho