CARTA 44 – De Marcos Siscar para Mariana Paiva

Campinas, 20 de outubro de 2020.

Querida Mariana,

Calculo que nos conhecemos há 5 anos. Andei procurando mensagens antigas na minha caixa de e-mail, até me dar conta que nosso primeiro contato tinha sido pelo Messenger. Na impossibilidade de encontros, de lançamentos, de passeios em família, a ocasião de lhe enviar uma carta cai como uma luva!

Em setembro de 2015, no Messenger, você se apresentava assim: “Oi, Marcos! Tudo bem? Sou Mariana, escritora também – estamos, aliás, na mesma exposição no Museu da Língua Portuguesa.”. Em geral, as pessoas preferem se apresentar pelo registro da carteira de trabalho, e não pela condição de artista. De repente, chegava você em forma de decassílabo (“Sou Mariana, escritora também”). Mas nessa expressão “escritora também” tem alguma outra coisa que me chama ainda mais a atenção, porque coloca em primeiro plano uma espécie de proximidade, de camaradagem.

Na sua fala, ser escritora parece natural. Tão natural quanto é (ou costumava ser) ir e vir, tão natural quanto é (ou deveria ser) sorrir. Não só escrever é natural, na sua frase, mas a identificação com a literatura funciona como modo de relação e compartilhamento. Você valoriza o que você faz ao valorizar o que faz o outro. Tem uma generosidade específica, que não é simplesmente passiva (como quem constata a coisa boa do outro), mas que introduz no contato interpessoal uma qualidade comum, uma reciprocidade virtuosa.

Claro que ficou mais fácil ler essa frase depois que nos conhecemos pessoalmente. Hoje, sou capaz de imaginar a forma característica como você diria: “Sou Mariana, escritora também”. Há 5 anos, marcamos um encontro na Unicamp e você me levou alguns livros que traziam sua marca de pertencimento ao espaço cultural da Bahia. Foi Oswald de Andrade que criou o bordão “A alegria é a prova dos nove”, mas foi o baiano Caetano Veloso quem deu a isso um sentido compreensível para mim, socialmente, esteticamente, existencialmente. Acho que você aplica como ninguém esse imperativo da alegria ao espaço da criação e da convivência. Busca transformar a alegria em coisa fácil, viável de alguma forma, mesmo que em algumas situações ela pareça complicada, ou mesmo impossível. E faz isso, o que é ainda mais admirável, sem parecer autoritária.

Acho tocante como essa “sabedoria” (eu chamaria assim) se conecta com a busca da “liberdade” pessoal, da qual você fala nos seus escritos. Foi ela, aliás, que a trouxe até Campinas, um lugar totalmente desconhecido, bem longe do mar, do qual você “não sabia nada” e “nem quis saber”. Não acredito em destino. Tudo o que fazemos é resultado de escolhas. E as nossas escolhas (consideradas as limitações que as restringem, e somadas a elas alguns “acidentes” de percurso) escrevem a narrativa da nossa vida. Fico pensando que encarar esse vazio diante de nós (como o escritor encara a página em branco, ou a tela em branco do computador) é muito mais animador quando é feito com liberdade e com alegria.

Claro que a liberdade envolve uma série de consequências, de responsabilidades. E claro que a alegria envolve sempre algum abandono: cada decisão implica em melancolia por aquilo que se deixa, transformado em passado, e por tudo aquilo que ela bloqueia no rol de possibilidades do futuro.

Coisas desse tipo parecem fervilhar nas entrelinhas de Vermelho-vida (Editora Patuá, 2018), narrativa do seu encontro com Campinas, que é uma espécie de preâmbulo a outras decisões de vida que a fixaram na cidade. Peguei o livro hoje pra reler. Acho muito interessante que tenha conhecido Campinas como uma cidade literária, ao fazer uma residência artística na Casa do Sol, de Hilda Hilst. Campinas gosta de ser vista como polo tecnológico ou universitário, mas raramente se define como uma cidade literária, que tem uma relação especial com a literatura.

Desde que a conheço, sei que você faz muita coisa, além de escrever livros: é jornalista, pesquisadora, publicitária, produtora e militante cultural, e até compositora. Mas seu relato da experiência na Casa do Sol mostra como a “literatura” (que vou chamar aqui, por interesse próprio, de “poesia”) é importante nessa experiência de liberdade. A poesia é uma forma de estar no mundo, de habitar o mundo. É na poesia que “o mais ínfimo grão de poeira é capaz de mudar tudo”. Aliás, belo modo de falar da experiência de liberdade! O que está em jogo na maneira que temos de ver um lugar, de habitar uma casa, é essa possibilidade de “mudar a vida” (como dizia Arthur Rimbaud).

A casa a recebe, mas é você que adentra a casa, desde a chegada, com “olhos compridos em frente ao grande portão de ferro”. A casa tem suas memórias, seus baús, mas você é capaz de ler a memória da casa em outros recipientes, em outros armários. Num certo momento do livro, se referindo a Hilda Hilst, você diz que o “baú que fica no escritório não é um lugar seguro para guardar” segredos pessoais, e acrescenta:

O armário da cozinha talvez. É que pouca gente vai atinar em contar sua história pelas louças que as portas de madeira guardam, Hilda […]. Por isso lá é um lugar bom e seguro, porque estamos tão acostumados a bisbilhotar papéis mas ainda não pensamos em contar a história de alguém pelas xícaras, pires, pratos de sobremesa, travessas”.

A memória das louças… Será que é o caso de pensar numa habitação poética que carrega a perspectiva da mulher? Já há algum tempo, você organiza ciclos de leitura de escritoras mulheres, que é um lado muito interessante da sua relação com a cidade e com a literatura. De resto, percebo que, em Vermelho-vida, você desloca a casa, ao ser deslocada por ela. Dá voz à memória da casa, mas também vai incorporando, ao longo do relato, a voz (ou as vozes) da casa, junto com os fantasmas que a habitam.

Ou seja, a casa não é só um receptáculo, ela deve se sentir habitada, repintada com seu vermelho-vida. Ou com uma cor qualquer, desde que cada cor esteja impregnada do lugar e da circunstância, desde que sejam cores vivas.

Muito bonita a forma como você descreve a brevidade da beleza e a recusa da beleza de se deixar reter, de se deixar aprisionar. É uma memória de criança, com você na praia:

então avistei uma flor. […] Era tão colorida e se oferecia a mim de tal forma roxa que queria tê-la ainda que por um segundo. Num átimo de instante a flor em minhas mãos. Eu largando a flor. A beleza me queimava a palma, a beleza insustentável de uma água viva.

A beleza, que é lugar da experiência de liberdade, está nessa miragem da forma (uma flor imaginária), ou talvez até na indefinição da forma (como a água, ainda que em modo animal: uma água-viva). Ali está a coisa viva, que brilha com cores vibrantes, com cores vivas, e que queima ao ser tocada.

A metáfora lembra Clarice Lispector, mas é, sem dúvida, de Mariana Paiva, com todas as suas cores.

Muitos abraços para você e para Cristiano!

Marcos Siscar

Imagens: Marcos Siscar
Clique aqui para ler (ou ouvir) a resposta de Mariana Paiva a esta carta.

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