Carta 59 – De Marcos Siscar para Maria Teresa C. R. Moreira

… em resposta à Carta 47.

Campinas, 13 de novembro de 2020.

Minha cara Maria Teresa,

Que encanto sua carta, escrita “à mão e coração”! Você usou essa expressão na intenção de Rebekah, mas vou supor que possa ter sido para mim também. Da minha parte, fico muito feliz em saber que minha mensagem a Antonio tenha chegado até você de forma especial. E assim começamos a conversar antes mesmo de nos dirigirmos um ao outro.

Aliás, queria pedir desde já para me desculpar se não envio uma resposta escrita à mão, embora seja de coração. Faz um tempo enorme que troquei a caneta pelo teclado. Primeiro foi a máquina de escrever (pois é, eu gostava de escrever à máquina), depois o computador. Lá se vão mais de três décadas que acho natural ver as letrinhas aparecendo na tela. A escrita vai saindo quase que simultaneamente dos dedos, enquanto vou ditando pra mim mesmo com a voz interna. De vez em quando, acompanho as frases que penso com o movimento dos lábios, como se isso ajudasse a marcar os ritmos e a fazer na boca o desenho dos sons. Se não é escrita à mão, a carta continua sendo uma escrita da mão, do corpo.

Lendo sua escrita bem desenhada e aerada, distribuída levemente na folha pautada, acabei me lembrando dessas histórias de máquina de escrever. Se me permitir, conto um episódio, que é uma forma de falar de mim e da poesia. A primeira máquina de escrever que tive, ainda na adolescência, foi comprada com muito custo por minha mãe, imaginando que a prática da “datilografia” (palavra anacrônica hoje) me ajudaria a conseguir algum trabalho de escritório na cidade onde morava. Naquela máquina, meus irmãos aprenderam a datilografar e eu, ao invés de aperfeiçoar a técnica… acabei escrevendo alguns dos meus primeiros poemas. Papel sulfite era um luxo que não tínhamos. Lembro que usava folhas pautadas arrancadas de caderno ou material de propaganda com uma face em branco, o que houvesse. Bem mais tarde, no livro O roubo do silêncio, escrevi um texto, meio poético, meio reflexivo, sobre essa experiência da máquina de escrever. Está logo abaixo, como post-scriptum, se tiver curiosidade.

Eu dizia que escrever à máquina continua sendo para mim uma forma de escrever com o corpo. É bem diferente de escrever à mão, claro. Mas não é só um “filtro” ou, eventualmente, uma forma de “censura” da espontaneidade. Pode ser isso, também, dependendo do caso. Por outro lado, conta muito a relação que temos com os textos que escrevemos: se preferimos manter a intuição inicial, as primeiras formulações, ou se preferimos corrigir, elaborar. Sou do segundo tipo. Gosto de explorar as primeiras ideias, misturar com outras, ir mexendo pra ver até onde vão. A intuição inicial está sempre lá, mas às vezes se desfigura; outras vezes, sinto que descobri alguma coisa, trazendo palavras daqui pra lá e de lá pra cá, cortando e colando. De toda forma, a intensidade do pensamento e da emoção é sempre real. E é isso o que mais conta.

E tem também o outro lado da moeda. É algo mais difícil de explicar, mas que me parece importante. Gosto de pensar que, quando sou espontâneo, quando estou usando o “corpo” (pra retomar a metáfora que usei acima), foi a memória que ajudou a consolidar aqueles gestos, aqueles gostos, aqueles movimentos, moldando-os ao longo do tempo. Não preciso pensar na posição dos meus dedos para escrever no teclado, por exemplo. Basta posicioná-los sobre a fileira do meio: eu penso a frase e eles vão fazendo tudo sozinhos, sem que eu precise acompanhar seus movimentos. Esse automático não veio do nada. Foi o corpo que fixou os gestos, exercitando-os, estabelecendo hábitos, às vezes em nome da necessidade, às vezes do gosto, às vezes da disciplina. Acho que esses automatismos do corpo influenciam muito nossa interação com o mundo.

Você tem toda razão quando imagina que um desses meus hábitos é “pensar escrevendo, […] escrever pensando”. E sei que para muita gente escrever poesia não tem nada a ver com pensar (seria mais um vício que um hábito). Pessoalmente, acho que são coisas complementares: nunca há coração sem pensamento, nem pensamento sem coração. Assim como o pensamento, o coração sozinho pode ser origem de coisas ótimas, mas também pode gerar infelicidades. Quem já viveu um tanto sabe disso. A gente tem que lidar com conflitos, com limitações, com perdas pessoais… É exigir muito do coração que ele se vire sozinho. A consciência e a reflexão ajudam a suavizar os desequilíbrios da vida, mas também a dar maior consistência às emoções que nos fazem bem. Acho que o mesmo se aplica à poesia.

Gostei da sua ideia de que é preciso “Alongar o olhar / Para espichar a vida”. E fiquei pensando se isso não se aplicaria também a essa mistura de sentimento e pensamento que eu chamaria de poesia. Fiquei pensando se alongar o olhar, ou seja, aumentar o campo de visão, estender a vivência para além do que está dado, não poderia ser o resultado das duas coisas, quando o sentir se encontra com o pensar.

Enfim, estou divagando a partir de uma diferença que você notou nos nossos modos de escrever. Curiosamente, alguns me acham muito racional, enquanto outros dizem que sou “sentimental”. Quanto a mim, penso que o que muda mesmo são as referências de cada um. Você diz, na sua carta a Rebekah, que é “toda coração”; que, inclusive, tem uma relação especial com o ponto de exclamação por causa disso. Sei que é uma particularidade importante mas, como você mesma notou, não é algo que nos afasta. Quando há inteligência de vida, há sempre um lugar para a empatia, apesar dos pontos de partida e das ênfases diferentes – ou seja, apesar das diferentes pontuações. Eu, por exemplo, sou um dos poucos que conheço que usa ponto e vírgula (rs). É um hábito que vem da língua francesa. O que conta realmente é a conversa, o alargamento das relações, já que o essencial está posto, para além das diferenças.

A empatia aparece na sua carta, e vejo que temos alguns percursos em comum. Não apenas o do rio Atibaia, que passa perto da sua casa e da minha. Você diz, por exemplo, que “decidimos ambos voltar” a Campinas. Teríamos histórias a compartilhar. Aliás, muita delicadeza sua fazer um poema (“Chegada à francesa”) a partir dessas experiências. Obrigado! Não é um “jardim à francesa”, nem uma “saída à francesa”: é uma chegada à francesa. Você inverte o negativo da expressão e a transforma em coisa bonita, receptiva. Aquilo que poderia parecer um gesto de desistência, uma saída furtiva, eventualmente ardilosa (“saída à francesa”), se transforma em encontro, em aventura calorosamente humana. Entre “portos e quintais”, aqui estamos, em correspondência com os lugares, com lugares outros, espichando nossa vista.

Você me disse que estava “grata”. Mas sou eu que deveria agradecê-la. Porque sempre que um leitor recebe como seu aquilo que escrevo, fico imensamente grato e surpreso. Não é raro que nos leiam, claro, mas é mais difícil que alguém se considere o destinatário particular de uma carta ou de um poema. Poderia haver felicidade maior para quem escreve? A hospitalidade de quem recebe e manifesta esse encontro é uma deferência especial, que merece ser agradecida.

A gratidão também tem suas histórias.

Certa vez, escrevi um texto sobre a gratidão. Era um texto acadêmico, meio técnico, sobre um filósofo, mas vinha de uma curiosidade grande a respeito desse afeto (a gratidão, o reconhecimento), que traz tanta coisa consigo. Lembro que o que mais me impressionou durante a pesquisa foi uma passagem do filósofo Nietzsche, na sua autobiografia. No dia em que fazia quarenta e quatro anos, ele pensou: “Como não haveria eu de estar grato à minha vida inteira?”. E acrescenta que, naquele momento, sentia que sua vida estava completa e que poderia finalmente começar a narrá-la: é porque ele reconhece sua vida e é porque ela é digna de reconhecimento que decide escrever a sua autobiografia. Havia ali provavelmente um sentimento de autossatisfação, que não vem ao caso. O que me chamava a atenção na frase era principalmente a ideia de que as nossas experiências vividas são dignas de gratidão. Como se, diante da nossa vida, independente do que tenha acontecido, esse reconhecimento do passado vivido fosse sempre necessário. Como se viver fosse receber um dom, um presente: não um dom divino (no caso de Nietzsche, não poderia ser), mas porque a vida acontece e, quando reconhecemos que aconteceu, ela passa a nos pertencer, a nos definir, a se identificar com o que somos.

É uma forma muito serena de ver as coisas, claro, porque a gratidão nem sempre é fácil. Será que algum dia conseguiremos ser gratos a 2020, apesar de todas as perdas, inclusive as perdas pessoais? É uma pergunta difícil e dolorosa. Mas em algum momento ela precisará ser colocada. Vai ser preciso identificar as consequências de 2020 sobre nossas prioridades, sobre nossa forma de viver. Esperemos encontrar, então, bons motivos de gratidão, uma relação menos predadora com a vida, com a natureza, com os outros.

Mas, voltando ao assunto, acho que essa necessidade de dar, de receber, de agradecer tem a ver com sua ideia de que (apesar de tudo que nos distingue e distancia) somos “interdependentes”, estamos em relação. E que o agradecimento nada mais é do que uma forma de marcar esse fato. Uma forma de marcar isso com um gesto do coração.

Às vezes, queremos agradecer uns aos outros como duas pessoas que, ao se cruzarem na rua, escolhem sempre o mesmo lado da calçada. Uma vez, duas vezes, acabamos fechando a passagem da outra pessoa. São curiosas essas situações de impasse, não é? Eu sempre fui fascinado por isso. A gente tende a achar que há ali algum traço comum de personalidade. Mas não é, necessariamente. Os corpos se encontram, mas nem sempre o coração vai pro mesmo lado. Às vezes, a relação se dá em forma de impasse. Diante dele, alguns preferem fazer a gentileza e dar a passagem; outros riem achando engraçado; e há aqueles que afetam irritação, que vão embora pisando duro, como se acusassem a outra pessoa de um estorvo. Mas tendo a achar que o pior dos casos é o daquele que anda sem se importar com nada, fazendo com que os outros se desviem. Esse é o que gostaria de destruir qualquer ideia de relação.

Em tempos de tantos sofrimentos, criados não só pela doença, mas por ideias cinzentas de ódio, não consigo deixar de ver aí uma metáfora política. É triste observar certas formas de dessolidarização “com o outro, todo outro”, como você diz. A incapacidade de pensar no espaço coletivo, a incapacidade de conviver e agradecer, são coisas muito graves.

Não vejo a poesia como uma solução. Para certas coisas que acontecem hoje, deveria servir a lei e sobretudo a (não por acaso, tão castigada) educação. Mas também não vejo a poesia como uma forma individual de abstinência, de fuga, de sobrevivência pessoal. A poesia é um espaço de coabitação (“respeito e delicadeza”, nas suas palavras), por mínimo que seja. É uma potência de reciprocidade. Um exercício do olhar que ajuda a ver o outro como algo mais do que um estorvo a ser eliminado. É um modo de cultivar determinadas posturas que gostaríamos que se generalizassem, que se tornassem espontâneas.

Claro que a poesia também mostra o desequilíbrio, a injustiça, a enorme tristeza das mínimas violências, a tarefa infindável da civilização. Mas uma coisa não exclui a outra. Se o equilíbrio é impossível, também é verdade que a impossibilidade nos move. Você diz que é “mulher de fé”, acredita que as coisas podem melhorar. É importante acreditar nas coisas, nesse sentido da disposição de seguir, de ir em frente. Escrever é uma forma de seguir, de não estagnar, de buscar o que nos falta, uma forma de vida.

Com o abraço amigo de

Marcos

P.S.

ESCRITO À MÃO

Ela me destinava aos misteres da burocracia. Mas, deve-se dizer, nunca o fez de maneira eficiente. Sua cor, de um branco retinto, lustroso, inimaginável para uma época de tanta poeira, me distraía enormemente. Não me lembro do seu nome. Era figura do que se poderia chamar de um puro objeto, um abismo para o olhar. Além disso, a própria tipografia tinha um estranho padrão de letra manuscrita. Substituição e morte do trabalho da mão. (Meu pai tinha estudado a caligrafia. O ornamento da letra carregava um orgulho da técnica. Como substituí-lo?) A máquina de escrever era um robô, uma prótese de mão, substituta; talvez culposa, não fossem os exercícios instrumentais, mas que logo se perdiam em devaneios gráficos e concretos, morfológicos, fetichizantes. Pode-se dizer que um dos caminhos da poesia é a singularidade manuscrita, a rejeição da máquina, sua proximidade com o desenho. Sim, o trabalho do corpo. Mas a pura singularidade da escritura da mão é improvável: ela também se baseia em códigos linguísticos, gráficos, estilísticos, grafológicos. A caligrafia e o desenho frequentam inclusive livros de poetas, reproduzidos em larga escala. Por outro lado, como pensar a poesia a partir da máquina? O que pode haver de comum entre um poema e um ofício (em três vias, com papel carbono) é relevante para a poesia? Digamos que só um poema pode dizê-lo. O poema dramatiza a tensão entre singularidade e reiteração no trabalho da mão. Gostaria de dar a isso o nome de dactilo-grafia, escrita de dedos. A pulsão do gesto convertendo-se em inscrição anônima, mas com a marca da mão, com a tipografia da mão. O coração na mão. Pela máquina, o poema submetido à dor ou à alegria da própria mão. O poema é um ganho simbólico obtido pela fábula da perda, ou uma perda simbólica imposta pela fábula do ganho? O poema transita. Não é o contrário, é contrariante. Abandonei a primeira máquina, encontrei outras mais poderosas. Os dedos buscaram a abstração, se traduziram em dígitos. Mas a abstração logo descobriu-se virtualidade. Às vezes, dá pau.

do livro O roubo do silêncio (2006)

Imagem: Marcos Siscar

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