CARTA 28 – De Rafa Carvalho para Katia Marchese

… em resposta à Carta 16.

Campinas, quarentena de 2020.

Ô, Katia,


Eita vixe. Que a paz seja aí em sua casa, viu?

E salve a sua saúde também, minha querida. Que carta linda você me escreveu. É uma carta-quase-toda-poema. Linda de se ler em versos tão lindos; ainda que tão tristes e fundos ou: sem-fundo. Pois parece que esse poço não tem fim, não é amiga?

Contávamos 90 mil mortos no Brasil, nesta pandemia, quando você me escreveu. Agora já passamos dos 100. E sabendo que o número real pode ser facilmente mais que 10 vezes maior… é infelizmente possível que já tenhamos ultrapassado o milhão, Katia. 1.000.000 de não-velórios.

Fora todas as contas demais, né? Dei adeus à minha matriarca sanguínea mais velha neste período… Não foi pelo vírus. Mas eu vivo pensando no quanto as mortes de minhas avós e bisavós – agora que nenhuma mais vive, a não ser magicamente em minha voz; e nas outras, que se abrem – tiveram de feminicídio. Uma ação disfarçada, sabe? Ou nem tanto. Na opressão de uma vida – injustiças veladas, com amparos na lei. Di-a-ri-a-men-te.

Fortes que eram, mesmo assim, elas duraram bastante. Mas suas passagens são trágicas. Como são as do povo negro, indígena, pobre e de tanta gente mais… que não se trata de minoria; senão do não-hegemônico-supremacial.

Obrigado por sua poesia, Katia. Por ter resistido aos nãos que o mundo lhe deu como sentença. E deixado brotar; fluir.

Às vezes penso que alguns versos podem ser a fecundação de um novo anjo; ou anja. Exu-mirim em manjedoura; deixado, sem abandono, numa encruzilhada.

Lembro que você me deu uma Iemanjá, devidamente preta, uma vez. Era um Sarau da Dalva e, se não me engano, meu aniversário; eu recém-chegava d’Angola. Se foi isso mesmo, aconteceu em 2016. Ou terá acontecido antes? 2015? Meu tempo é tão não-linear…

Mas eu sei o quanto fiquei feliz, querida. E grato. Ela segue comigo até hoje. Mudei de casa, de altar; de vida: e ela segue aqui; junto. Sabe… de 2016 até agora há pouco, estive numa fase… talvez a mais dura que já tive; por enquanto. Iemanjá me guiou a que essa barquinha – que eu sou – não virasse. Mas olhe… não foi fácil. Eu sou homem e isso “me dá” privilégios que hoje entendo – e já não quero mais. Tenho cara de homem, o que disfarça minha pansexualidade esquisita demais até pra mim; e engana as pessoas, às primeiras vistas, no tocante aos meus yins yangs. No mais, sou um vira-latas de raça. Esse nascido pobre, exilado e periférico, sem parentes importantes – mas que pra mim eles são; nem dinheiro no banco pra financiar minhas coisas de artista, meu bon à vivre – não sei se é assim que se diz; sem moral nos círculos literatos, nas natas da cultura e do intelecto brasileiros. Um cara estranho de mais, amiga, com um Oxalá velho demais à cabeça… e as asas fortíssimas da poesia me curvando as costas. Por todos os cantos do mundo onde passei até hoje – e não foram tão poucos; me senti em casa… mas também estrangeiro – inclusive aqui; profundamente.

Como bom libriano, ascendendo em peixes: nado em tudo isso; tentando equilibrar as coisas. Mas em suma, poeta, é o seguinte: a direita me dói; a esquerda também. O fascismo me oprime; a postura de muitos ditos antifascistas, muitas vezes, também. O capitalismo me entristece e ofende; mas eu também não passo pano a nenhum outro sistema que tenha sido implantado até hoje… Não em nações, por menores que sejam; talvez em pequenas comunidades, aldeias que conheci… mas mesmo nelas: sempre nasce do ego, pros egos, um curto-circuito que causa essa importante desconexão. Nós, humanas, podemos ser muito melhores que isso… Mas, por alguma razão: ainda não fomos. E como esse mundo é dual: podemos ser piores também. E nisso: temos ido muito bem; catastroficamente. Que bicho estranho o homem… nessa caça interespécie. Único animal predador por ostentação – e inclusive de si mesmo. Que despreza o sangue correndo nas veias; por sangue escorrendo das mãos.

Sendo assim: como falar de fé, né minha amiga? Pois é… quando soube que meu filho se chamava Fé, logo intuí que algum mistério, ainda maior que o da paternidade, se aproximava de mim. E no começo, eu pegava Fé num braço só, Katia – mão e antebraço; só. Agora já não posso mais. Fé cresceu; pesou. E pode bem ser que um dia fique maior que eu, como aconteceu comigo e meus pais. Tenho sobrevivido graças a Fé, querida. Pra que ele possa viver. Pegando na enxada pra que ele tenha uma abóbora, um tomate pra comida; nesse desemprego do pai poeta. Ainda acredito que as histórias podem mudar o mundo, Katia. Podem mudar a História. E como possível responsável, a literatura poderia ser uma esperança. Mas quem é essa literatura? Quem são? Pode ser da “instituição” estar bem mais perto dos que matam, ainda, nos seus versos, Katia; do que desses, que morrem. E se for assim: como a literatura poderá matar; o matador? Vão suicidar seus status? Parar de viverem como nobres que não têm mais nada, só pompa? Chamar a humildade e a democracia participativa para suas lives, festivais e lançamentos? Fazer tudo isso em equidade de fato – ou ainda agindo como o “bom sinhô” por caridade? Temos que saber de quem essa literatura é filha; porque talvez ela seja afilhada do nepotismo e da meritocracia; irmã da corrupção e, por que não?, da injustiça e do fascismo. Mas dá tempo de lembrar que não somos nossos textos: somos nossas almas.

Sou um utópico, querida, você sabe. Ainda tenho esperanças na nossa sobrevivência. Espero que percamos o medo do espelho; paremos com os lagos artificiais do nosso narcisismo – eles nos matam; e as flores que daí nascem: são artificiais também.


Já a poesia é outra coisa. Ela sempre sobreviverá. Mas talvez perca seus médiuns pela Terra. Se Deus É acima das dualidades, Ela é Deusa também. Se de dia Maria, de noite João… seu nome, além do Amor, certamente é Poesia.

E da fé, Katia, eu aprendi por aí, nos terreiros dessa vida, que quando acaba a vela: a gente ainda reza à chama dentro.


Com um beijo nessa sua alma, sem-fim,


Rafa

Imagens: Rafa Carvalho

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