CARTA 29 – De Fabíola Rodrigues para Fausto Antonio

… em resposta à Carta 17.

Fausto, meu querido amigo,

que alegria receber a sua carta! Ao lê-la, pude ouvir sua potente voz me convocando para tantas conversas bonitas, que senti o tempo se dissolver a ponto de parecer que a última vez que nos vimos foi ainda ontem. E, no entanto, começo a fazer contas e nem consigo acreditar, já há muito tempo não nos encontramos! Apesar da distância, guardo vívida na memória a lembrança dos tempos em que nos conhecemos, no início da década de 2000, quando eu ainda era uma menina forasteira nessas terras docemente brutas que aprendi, depois de muitos anos, a chamar de minha casa.

Foi praticamente nessa época, quando trabalhamos juntos, levantando nossas cabeças acima das lâminas daqueles que insistem em tornar a cidade um não-lugar, foi nesse tempo em que sonhamos juntos uma cidade desabrochada de justiça e beleza, que conheci, veja só, o centro da cidade e a antiga Estação Ferroviária da Companhia Paulista, àquela época rebatizada de Estação Cultura, e me lembro, até hoje, do meu engasgo diante do prédio industrial mais bonito que eu já havia visto na vida.

Entrego-me a essa calma saudade porque é desenrolando esse novelo da memória que me dou conta de que aquele encontro com a Estação Cultura, décadas atrás, despoletou em mim o velho estranhamento diante das coisas, essa sideração estética diante do inaudito que, no curso da vida, aprendi a chamar de poesia. O encontro com a Estação Cultura inflou em mim a paixão pela poética da cidade, o que me impulsionou a dedicar alguns pares de anos da minha história à cotidiana arqueologia dos seus significantes, na esperança de trazer à luz os sentidos instáveis, múltiplos, contraditórios e profundos que esteiam a sua própria formação e (re)invenção.

A poesia para mim é um modo de olhar o mundo. E também a ansiada e temida tempestade que se abate sobre nós quando encostamos nossa pele na prosódia do outro. Por isso, agora, enquanto lhe escrevo essa carta, lembrando-me de sua voz tonitruante ecoando nos meus ouvidos quando li a sua carta, recordo-me do abalo sísmico produzido em minhas veias quando pisei, pela primeira vez, no continente africano.

Ao ler sua carta e ouvir mentalmente sua voz, ouvi também, os ecos dessa nossa ancestralidade africana, e pude me esticar ao sol das vozes estranhamente familiares que pronunciavam o idioma guerzé, que eu não conhecia, mas, que eu intuía como um ronrom antigo, abrigado no mais profundo elo com os antepassados que eu havia perdido e então reencontrado.

Nas florestas profundas de N’Zérékoré, na Guinée-Conakry, reencontrei-me com a poesia, com essa poesia antiga, ancestral, arcaica, inscrita nos meus primórdios, essa habitante terna e vetusta de mim, que eu já havia esquecido, mas que no atordoamento com o encontro daquele mítico e mágico mundo que se descortinava diante dos meus olhos, eu, então, finalmente, havia lembrado.

A poesia “Jornada Africana”, se não me falha a memória, foi a primeira que se impôs na minha boca, ainda dentro do carro, quando cheguei em N’Zérékoré, e traduz minha experiência de choque, de concussão, de surpresa, de absoluta ignorância diante do que eu via, mas não enxergava:

JORNADA AFRICANA

Banana trapos
Moleque poeira
Procissão de baldes
Vestes coloridas
Canto cheiro barulho
Carros moto laranja
Mulheres malabaristas
Lindo talhe delgado!
Homens à toa
Crianças penduradas
Casas mocambo buraco
Os olhos do viajante confusos veem
E não enxergam

É com carinho que me lembro dessa expedição transoceânica pelo mais profundo de mim, e foi nesse primeiro contato com a África Ocidental que vivi uma das experiências que se tornaram epítome do que vem a ser a poesia no meu idioma singular. Aconteceu numa comunidade muito afastada, cujo nome me escapa à lembrança, situada quase na fronteira com a Libéria, um lugar praticamente inacessível, uma verdadeira dobra histórica, preservada desse modo de vida vexatório em que vivemos, mas, do qual, inexplicavelmente, muita gente insiste em se orgulhar.

Nesse lugar remoto, em que ninguém mais se recordava, felizmente, quando havia sido a última visita do homem branco, minha humanidade e minha poesia se conjugaram numa (re)descoberta, na mesma hora e lugar: reunida com o Conselho de Sábios da comunidade, para conhecer seu modo de vida, sua relação com a floresta e suas preocupações mais importantes, um silêncio mortífero se abateu sobre o grupo quando uma criança de uns quatro anos entrou correndo na velha palhoça em que nos reuníamos, em busca do pai.

Era uma adorável menininha, que jamais havia visto uma pessoa branca e se postou estatelada diante de mim, duvidando do que via, ou convicta de que se encontrara com algum espírito extraviado de seu destino. O pai, timidamente, explicou-me que ela nunca tinha visto alguém branco e pediu minha autorização para que ela me tocasse, e assim soubesse que eu era humana, não um fantasma.

Assenti feliz e prontamente, aliviada por não ter desonrado meus anfitriões, e aquela menininha linda, esculpida no ébano, foi tocando seus dedinhos um a um sobre a tela em branco com respiração ofegante em que me converti, até se assegurar de que eles não atravessariam o outro lado da minha pele espectral. Acho que também feliz e aliviada, ela sorriu para mim, eu correspondi abrindo meus braços, e ela se aconchegou no meu colo, ocupando-se de investigar o meu inimaginável cabelo, o resto da reunião.

Foi o encontro mais feliz e mais poético da minha vida: eu pude ser humana, na mais radical estrangeiridade, na pele da menina anfitriã. É assim que vejo a poesia, como um estranhamento familiar, como uma estrangeiridade movente, andante, em deslocamento, como a polissemia dos tantos nomes possíveis da condição humana.

Ah, meu amigo Fausto, a poesia é essa perturbação, esse tumulto espiralando-se pela platitude, essa turbulência epifânica que se dá no efêmero instante em que o miúdo se reveste de grandeza. É por essa razão que a poesia mora na retina de quem lê o mundo, antes mesmo de saber escrevê-lo; há poesia no nascimento e na morte, no útero e no túmulo, no silêncio e no grito, no sol e na chuva, no mar e no deserto, no dia e na noite.

A forma do poema é apenas uma armadilha inócua, uma emboscada lúdica que o poeta cria para reter e se admirar da poesia que instantaneamente, sem que ele pretendesse, imaginasse ou quisesse, revelou-se como fotografia diante de seus olhos. A poesia é um animal selvagem e não se deve ousar controlá-la; é uma dádiva que se recebe e depois se cultiva, às vezes, por um longo tempo, até que esteja, por inteiro, maturada.

Sua voz, meu querido amigo, que pude mentalmente evocar pela sua carta, foi a poesia que precipitou a chuva nesses meus dias pandêmicos, tão secos e áridos. Não é fácil burilar a poesia quando não se pode sequer ir até a esquina sem sobressaltos, mas isso também é brutalmente poético, a desordem e o seu convite para que ressurjamos do abismo de nós mesmos, quando todas as nossas certezas estão irremediavelmente partidas.

Um abraço com carinho,

Fabíola

Campinas, inverno de 2020

Imagens: Fabíola Rodrigues