… em resposta à Carta 42.
Campinas, 13 de novembro de 2020.
Caríssimo Jeff,
Sua carta me deixou surpreso e feliz. Abro o envelope e começo a retirar as folhas. O prenúncio é de amarelo, mas ao deixar o envelope vejo que as folhas são cor de laranja, de um abóbora brilhante, em contraste com o fundo pardo. Sobre sua gramatura densa, o sol faísca. Algo é encenado. Depois, há uma retração estratégica: como você diz, cada palavra e cada frase embalam um silêncio miúdo, traduzido concretamente por tantas lutas, com tanto envolvimento. A carta toda acaba sendo um portal de intensidades, que parece chegar para combater a indiferença, ou seja, para avivar as diferenças.
Se a carta não marcou em mim principalmente a distância, é porque você teve a enorme generosidade de fazer um passo na direção das minhas referências, levantando pontos em comum e tocando de modo muito cuidadoso naquilo que foi provavelmente percebido como divergência. Digo que é generoso colocar potenciais desacordos (em relação à vida e à poesia) na forma de perguntas. Acho que sempre há, em casos assim, por mínima que seja, alguma troca. Por isso, gostaria não só de agradecê-lo, mas de abraçá-lo. Abraço-o agora, por escrito mesmo, porque a linguagem é uma instância da vida.
Aliás, conversava outro dia sobre o projeto “Cartas em torno da Sobrevivência da Poesia” com o seu curador. Tenho a impressão de que o SESC sempre patrocinou a diversidade, mas que a particularidade dessa iniciativa é justamente a de criar um espaço de interação entre diferenças, alguma “correspondência”. Entendo correspondência não como identificação, coincidência ou anulação dessas diferenças, mas como dispositivo necessário para que as singularidades expliquem as suas razões, para que se coloquem em relação.
A situação de retraimento da pandemia não apenas criou uma sensação de isolamento e de carência, a que iniciativas desse tipo vieram preencher, mas também passou a mostrar mais claramente necessidades que estavam abafadas por outras situações, incluindo aí a necessidade da arte como fator de humanização. São pontos que você aborda na sua carta e que vêm ao encontro dessa ideia de que as diferenças não só nos definem (e, portanto, a rigor, nos separam) como também nos mobilizam em relação a um outro (de certo modo, nos aproximam).
A referência à Unicamp funciona na nossa troca como um tópico de correspondência. É um ponto de cruzamento nas nossas trajetórias, embora possa ser também (não apenas pelo fato da idade) um motivo de distanciamento. É verdade que a universidade representava uma espécie de “Ítaca” (para retomar a palavra que você usa), ou seja, uma ideia de felicidade. Isso aconteceu em algum momento da minha vida, mas já tinha ficado para trás, bem antes do meu reencontro recente com a cidade. A vida dá muitas voltas. Estamos o tempo todo às voltas com a vida. Teria coisas a dizer sobre a copa das árvores, as prateleiras da biblioteca, a ocupação da “Taba”, mas você traz várias outras conversas importantes…
Quando cheguei à Unicamp, em 1984, já escrevia poesia. Na verdade, fazer Letras era decorrência exatamente disso, desse interesse, do acaso de ter encontrado no fundo do pátio do colégio público, atrás de cadeiras velhas encostadas, a porta de alguma biblioteca. A propósito, desenterro um poema dessa época, que nunca publiquei, num formato que não usaria hoje:
biblioteca
li- vr- os carcomidos e espaços ri- tu- ais de séculos bom esse sopro na- bo- ca já negra de luz
Não imaginava que a universidade faria de mim um escritor. Tampouco imaginava, por exemplo, que existisse pesquisa sobre literatura. Naquela época, vindo de um universo cultural talvez até mais acanhado que o seu, tudo era uma descoberta constante. Acho que por isso não tive grandes decepções (como no seu caso) com a graduação em Letras. Tinha minhas críticas, mas vivia como novidade até mesmo aquilo que não confirmava meu interesse já bem definido pela literatura e, em especial, pela poesia. Enveredei pela pesquisa, e fui tentando articular a necessidade prática, profissional, com a necessidade artística. Traduzir foi a primeira solução que encontrei para juntar o estudo da poesia e a escrita da poesia, o interesse pela poesia e a prática da poesia. Você também é tradutor, deve entender isso.
De uns anos pra cá, venho notando justamente que há uma demanda dos alunos por alguma experiência desse tipo, mesmo da parte daqueles que não se definem necessariamente como poetas, artistas etc. Passei a oferecer cursos de tradução de poesia, coisa que não fazia antes, e a propor cursos de escrita criativa para alunos da graduação. Percebi que fica mais fácil falar de poesia quando as pessoas estão envolvidas com opções que elas mesmas fazem (um autor que querem traduzir, opções estéticas e textuais que lhes dizem respeito). A partir do ano que vem, teremos um “certificado” em tradução para estudantes de Letras. Em outra escala de atuação, cheguei a apresentar um documento à CAPES, há alguns anos, defendendo a valorização da escrita criativa na avaliação dos cursos de Pós-Graduação. Não fomos bem sucedidos na defesa dessa ideia, e há argumentos contrários que precisam ser levados em consideração.
Mas, de modo geral, posso dizer que concordo com você: que há muito interesse em pensar uma educação pela arte, uma educação pela poesia. Que há interesse em ensinar a poesia nas escolas de modo mais criativo (menos burocrático) e menos preconceituoso (poesia é difícil? poesia é elitista?). Que a arte, de modo geral, deveria juntar conteúdos com estratégias, ao invés de permanecer como uma espécie de enfeite para dias de festa. É triste notar que, enquanto alguns cursos de Medicina começam a incluir as humanidades no currículo, a tendência geral dos currículos de ensino fundamental e médio, hoje, é fazer da educação um treinamento para as necessidades e habilidades exigidas pelo “mercado”. A educação básica deixa de ser uma educação para o “homem”, ou uma educação para o “cidadão”, e passa a se restringir à formação de “mão de obra”.
São tempos muito complicados para a vida em comum. Como pai, tive contato longo com o público de classe média de uma escola particular de Campinas. O cenário, nos últimos anos, foi se tornando desolador. A questão política, no pior sentido, chegou ao primeiro plano, inclusive nas relações pessoais. No plano nacional, as atrocidades e os absurdos que testemunhamos diariamente, da parte de presidente, ministros, diplomatas e alguns militares, somados à situação mais geral da pandemia, não deixam espaço para qualquer diálogo, e tampouco para a indiferença (isto é, algum tipo de recesso pessoal). Volto a isso na sequência, mas acho que essa dificuldade da esfera pessoal é um problema. Acho que preservar a dimensão íntima é uma condição para que possa haver um movimento na direção do “comum”: quando toda pulsão é imediatamente pública, absolutamente comum, é a própria ideia de comunidade que se perde.
Atualmente, tenho tentado manter a calma e pensar nas estratégias; pensar na efetividade de protestos e das ações, nos lugares e nos momentos em que elas farão algum sentido coletivo. A ideia de que há uma “crise”, e de que essa crise não é de hoje, é algo que levo bastante em conta (tenho um livro de ensaios chamado Poesia e crise, por exemplo). Mas não acredito que a crise vai acabar. Não faço questão de “inferno”, mas acredito ainda menos em “paraíso”. Se crise é desequilíbrio, a crise é o elemento no qual vivemos, qualquer que seja o regime político. Ela se renova continuamente. Por isso, não a vejo como sinal de decadência, mas como parte de um processo de transformação que (em termos históricos) costuma funcionar como reacomodação e otimização do sistema. Então, penso que é preciso elaborar uma ideia de crise que possa ser usada, na medida do possível, contra os desajustes provocados por aqueles que mais se aproveitam das reacomodações, aqueles que inclusive reivindicam a crise por oportunismo (por exemplo, como argumento para retirar a literatura dos currículos), no fundo, para gerar mais crise, aprofundar o desequilíbrio e a injustiça.
Você me pergunta o que penso do boom de pequenas editoras, do aumento de edições de autor, da multiplicação e da diversificação dos tipos de presença da poesia, hoje. Ao contrário de alguns colegas, vejo isso com simpatia. Para quem faz crítica literária, entender o conjunto daquilo que acontece hoje é um problema. Porém, do ponto de vista da poesia, da presença social da poesia, a proliferação é uma riqueza. Estamos em acordo sobre isso, claro. O que me parece fundamental é entender que há complementaridades onde parecem existir apenas relações de força. Claro que, nesses diferentes modos de existência, de prática e de vivência da poesia, há conflitos de interesse. O mérito desses conflitos precisaria ser analisado caso a caso. Mas, de modo geral, vejo a diversidade de razões, de lugares, de iniciativas como indício de que a poesia permanece coisa “viva” (para retomar sua palavra). Do ponto de vista da dinâmica social, elas se confirmam, ainda que em determinados contextos possam estar em litígio.
Já do ponto de vista crítico (da compreensão do sistema, digamos), acho que a diversificação não é um valor em si. Seria necessário dar rigor e inteligibilidade a certos fenômenos, mostrar sua consistência estética e histórica, além de seu interesse público. São coisas que demandam muito trabalho, frequentemente trabalho longo. Quem aspira a ter essa voz crítica precisa assumir que o trabalho deve ser feito, e que os espaços para isso devem ser continuamente negociados. Há uma enorme onda conservadora, atualmente, que alguns interpretam como inercial, e outros como reação, isto é, como consequência das aberturas já conquistadas. Se o objetivo é aprofundar os movimentos de abertura, é preciso levar em conta a complexidade do processo.
A “poesia de luta” é um recorte, uma dessas formas de (re)organizar a tradição poética. Bem interessante esse seu projeto “Trunca”, que procura dar visibilidade a autores latino-americanos pela via da tradução. Na crítica literária, já é um tema antigo, sobre o qual muita tinta foi derramada. Não gosto de entrar na discussão pelo prisma da falta de “qualidade”, de valor intrínseco. Por outro lado, constato que, em muitos casos, de dentro da militância, o fenômeno da poesia acaba sendo visto como mera instância da luta política, e por vezes como um sucedâneo, uma compensação melancólica à perda ou à impossibilidade da própria luta. Acho que há um problema aí. Às vezes, a prática da poesia contradiz inclusive o modo de falar sobre a poesia e de justificá-la: pensava nisso outro dia, lendo com meus alunos poemas de Alex Polari de Alverga, que acho que você conhece, prisioneiro político durante a ditadura militar, comparando o que ele dizia nos poemas com o que ele dizia sobre sua poesia. Acho que a poesia de luta precisa ser pensada também como poesia, como modalidade de poesia, no contexto de uma linguagem e de tradição.
Para tentar resumir um pouco bruscamente uma questão complicada, diria que a poesia é parte do real. A poesia não é apenas um modo de exprimir o real, não é a vacância do real. A poesia, o imaginário, é uma forma de vida. Há uma contradição pulsante quando arte e realidade são colocadas em planos diferentes. E acho que não preciso insistir muito nisso. Bastaria lembrar a síntese exemplar dessas duas instâncias que você faz, pessoalmente, vivendo a poesia, ritmando o poema como parte da própria luta – uma luta contra a injustiça, contra certas modalidades de autoengano, contra a indiferença.
Para quem é poeta, a ideia de realidade não deveria preceder o poema. Não deveria haver aí uma hierarquia de princípio. Artista não é aquele que dá forma à realidade? Por motivos semelhantes, não faz muito sentido para mim uma oposição de princípio entre “realidade interior” e “realidade exterior”, entre a matéria do sentimento e a matéria política. Há política no quintal da minha casa, assim como há uma sintomática pulsional, pessoal, na luta política. A questão é como essas relações se ordenam num poema: se a intimidade é capaz de constituir uma figuração ética, se a luta é capaz de absorver as contradições pessoais etc.
Sinto que a conversa foi para um lado muito abstrato, mas não queria concluir sem comentar esse ponto.
Como você notou, há diferentes tons na minha poesia, mas talvez a figuração da dimensão pessoal se sobressaia. Dentro dessa figuração, a “distância” (da paisagem) não se opõe à relação com o outro; se ela é imposta por limites, muros, portas, cercas elétricas, idas e vindas para dentro e para fora, a dimensão política está efetivamente colocada. Colocada na sua dificuldade. Se aplico certo pathos à jardinagem, não é por sentimentalismo ou por misticismo (por tomar poesia como quem toma a ayahuasca do quintal), mas porque me interessa flagrar ali o drama da minha constituição como sujeito e, portanto, minha relação com o outro. Não sou necessariamente o herói dos meus poemas. Penso sempre nas impossibilidades e nos processos de exclusão que estão envolvidas nas minhas ações.
Acabo de escrever um texto que se chama “Cemitério de leucenas” (leucena é uma árvore muito comum aqui em Sousas, uma planta invasora, que se multiplica rapidamente). Essa é a última parte do poema:
Um cemitério de leucenas. No início era a leucena. A leucena cobria tudo. A leucena era inelutável, um vasto mundo de galhos intrincados. Dispostos em declive, em meio a pedras e jararacas. Foi preciso domesticar a leucena. Cortar, arrancar, triturar. Antes com força e alegria, concentração e estudo. Com um sonho de leveza. De volta ao fim outra vez me curvo, caio de joelhos, saio ferido. Cada vez mais a distância se impõe, as forças me medem. Cada vez mais me desafia em dias de chuva, a roupa toda molhada, com um gesto de raiva, lançar nesse cemitério um feixe de restos. Chove intensa e abundante a chuva de verão. O coração dispara, ofegante, com um leve escurecimento da vista. Estou vivo. Luto com leucenas. Elas me conquistaram. Eu as reconquisto. Somos um ecossistema. Ainda morro por elas. Ainda acabo morrendo em cena.
A “cesura” poética (a instância do ritmo, ainda que na prosa) é “íntima e histórica”, como você diz. A realidade é vista como alternância de cortes (“censuras”) e continuidades que pode ser descrita poeticamente. O sujeito se constitui ali, nesse ritmo. É preciso civilizar, abrir uma senda, combater a generalização daquilo que ameaça, mas também levar em consideração aquilo que me excede.
O que quero dizer é que a poesia pode ser política sem ser necessariamente ativista, explorando e assumindo seus impasses, sua estrutura ética. Claro que muito frequentemente a poesia está engajada na ideia de justiça social (não me consta que os poetas defendam a injustiça, a não ser involuntariamente). Mas minha afinidade com sua militância vem mais do fato de que, ao se opor à opressão, ela possa se opor também à anulação do outro.
A poesia tem tudo a ver com a reciprocidade, com a escuta. Então, prefiro pensar que a poesia é sobretudo correspondência, no sentido que disse acima, ou seja, há poesia quando me dirijo a alguém, pessoalmente (ainda que não o conheça, ainda que se trate virtualmente de um coletivo), e ele me ouve como destinatário específico daquela mensagem (ainda que não me conheça, ainda que isso não nos reúna, etc.).
Sem minimizar todas as situações em que a injustiça precisa ser denunciada e combatida, eu reescreveria a frase que você cita em sua carta (“Isso tampouco é vida”), para dizer, sobre a poesia: “Isso também é vida”.
Com um abraço,
Marcos