Carta 54 – De Marcos Siscar para Jeff Vasques

… em resposta à Carta 42.

Campinas, 13 de novembro de 2020.

Caríssimo Jeff,

Sua carta me deixou surpreso e feliz. Abro o envelope e começo a retirar as folhas. O prenúncio é de amarelo, mas ao deixar o envelope vejo que as folhas são cor de laranja, de um abóbora brilhante, em contraste com o fundo pardo. Sobre sua gramatura densa, o sol faísca. Algo é encenado. Depois, há uma retração estratégica: como você diz, cada palavra e cada frase embalam um silêncio miúdo, traduzido concretamente por tantas lutas, com tanto envolvimento. A carta toda acaba sendo um portal de intensidades, que parece chegar para combater a indiferença, ou seja, para avivar as diferenças.

Se a carta não marcou em mim principalmente a distância, é porque você teve a enorme generosidade de fazer um passo na direção das minhas referências, levantando pontos em comum e tocando de modo muito cuidadoso naquilo que foi provavelmente percebido como divergência. Digo que é generoso colocar potenciais desacordos (em relação à vida e à poesia) na forma de perguntas. Acho que sempre há, em casos assim, por mínima que seja, alguma troca. Por isso, gostaria não só de agradecê-lo, mas de abraçá-lo. Abraço-o agora, por escrito mesmo, porque a linguagem é uma instância da vida.

Aliás, conversava outro dia sobre o projeto “Cartas em torno da Sobrevivência da Poesia” com o seu curador. Tenho a impressão de que o SESC sempre patrocinou a diversidade, mas que a particularidade dessa iniciativa é justamente a de criar um espaço de interação entre diferenças, alguma “correspondência”. Entendo correspondência não como identificação, coincidência ou anulação dessas diferenças, mas como dispositivo necessário para que as singularidades expliquem as suas razões, para que se coloquem em relação.

A situação de retraimento da pandemia não apenas criou uma sensação de isolamento e de carência, a que iniciativas desse tipo vieram preencher, mas também passou a mostrar mais claramente necessidades que estavam abafadas por outras situações, incluindo aí a necessidade da arte como fator de humanização. São pontos que você aborda na sua carta e que vêm ao encontro dessa ideia de que as diferenças não só nos definem (e, portanto, a rigor, nos separam) como também nos mobilizam em relação a um outro (de certo modo, nos aproximam).

A referência à Unicamp funciona na nossa troca como um tópico de correspondência. É um ponto de cruzamento nas nossas trajetórias, embora possa ser também (não apenas pelo fato da idade) um motivo de distanciamento. É verdade que a universidade representava uma espécie de “Ítaca” (para retomar a palavra que você usa), ou seja, uma ideia de felicidade. Isso aconteceu em algum momento da minha vida, mas já tinha ficado para trás, bem antes do meu reencontro recente com a cidade. A vida dá muitas voltas. Estamos o tempo todo às voltas com a vida. Teria coisas a dizer sobre a copa das árvores, as prateleiras da biblioteca, a ocupação da “Taba”, mas você traz várias outras conversas importantes…

Quando cheguei à Unicamp, em 1984, já escrevia poesia. Na verdade, fazer Letras era decorrência exatamente disso, desse interesse, do acaso de ter encontrado no fundo do pátio do colégio público, atrás de cadeiras velhas encostadas, a porta de alguma biblioteca. A propósito, desenterro um poema dessa época, que nunca publiquei, num formato que não usaria hoje:

biblioteca

li-
    vr-                         os carcomidos
         e                      espaços
ri-             tu-           ais de séculos
    bom                     esse sopro na-
    bo-                       ca já negra
               de luz

Não imaginava que a universidade faria de mim um escritor. Tampouco imaginava, por exemplo, que existisse pesquisa sobre literatura. Naquela época, vindo de um universo cultural talvez até mais acanhado que o seu, tudo era uma descoberta constante. Acho que por isso não tive grandes decepções (como no seu caso) com a graduação em Letras. Tinha minhas críticas, mas vivia como novidade até mesmo aquilo que não confirmava meu interesse já bem definido pela literatura e, em especial, pela poesia. Enveredei pela pesquisa, e fui tentando articular a necessidade prática, profissional, com a necessidade artística. Traduzir foi a primeira solução que encontrei para juntar o estudo da poesia e a escrita da poesia, o interesse pela poesia e a prática da poesia. Você também é tradutor, deve entender isso.

De uns anos pra cá, venho notando justamente que há uma demanda dos alunos por alguma experiência desse tipo, mesmo da parte daqueles que não se definem necessariamente como poetas, artistas etc. Passei a oferecer cursos de tradução de poesia, coisa que não fazia antes, e a propor cursos de escrita criativa para alunos da graduação. Percebi que fica mais fácil falar de poesia quando as pessoas estão envolvidas com opções que elas mesmas fazem (um autor que querem traduzir, opções estéticas e textuais que lhes dizem respeito). A partir do ano que vem, teremos um “certificado” em tradução para estudantes de Letras. Em outra escala de atuação, cheguei a apresentar um documento à CAPES, há alguns anos, defendendo a valorização da escrita criativa na avaliação dos cursos de Pós-Graduação. Não fomos bem sucedidos na defesa dessa ideia, e há argumentos contrários que precisam ser levados em consideração.

Mas, de modo geral, posso dizer que concordo com você: que há muito interesse em pensar uma educação pela arte, uma educação pela poesia. Que há interesse em ensinar a poesia nas escolas de modo mais criativo (menos burocrático) e menos preconceituoso (poesia é difícil? poesia é elitista?). Que a arte, de modo geral, deveria juntar conteúdos com estratégias, ao invés de permanecer como uma espécie de enfeite para dias de festa. É triste notar que, enquanto alguns cursos de Medicina começam a incluir as humanidades no currículo, a tendência geral dos currículos de ensino fundamental e médio, hoje, é fazer da educação um treinamento para as necessidades e habilidades exigidas pelo “mercado”. A educação básica deixa de ser uma educação para o “homem”, ou uma educação para o “cidadão”, e passa a se restringir à formação de “mão de obra”.

São tempos muito complicados para a vida em comum. Como pai, tive contato longo com o público de classe média de uma escola particular de Campinas. O cenário, nos últimos anos, foi se tornando desolador. A questão política, no pior sentido, chegou ao primeiro plano, inclusive nas relações pessoais. No plano nacional, as atrocidades e os absurdos que testemunhamos diariamente, da parte de presidente, ministros, diplomatas e alguns militares, somados à situação mais geral da pandemia, não deixam espaço para qualquer diálogo, e tampouco para a indiferença (isto é, algum tipo de recesso pessoal). Volto a isso na sequência, mas acho que essa dificuldade da esfera pessoal é um problema. Acho que preservar a dimensão íntima é uma condição para que possa haver um movimento na direção do “comum”: quando toda pulsão é imediatamente pública, absolutamente comum, é a própria ideia de comunidade que se perde.

Atualmente, tenho tentado manter a calma e pensar nas estratégias; pensar na efetividade de protestos e das ações, nos lugares e nos momentos em que elas farão algum sentido coletivo. A ideia de que há uma “crise”, e de que essa crise não é de hoje, é algo que levo bastante em conta (tenho um livro de ensaios chamado Poesia e crise, por exemplo). Mas não acredito que a crise vai acabar. Não faço questão de “inferno”, mas acredito ainda menos em “paraíso”. Se crise é desequilíbrio, a crise é o elemento no qual vivemos, qualquer que seja o regime político. Ela se renova continuamente. Por isso, não a vejo como sinal de decadência, mas como parte de um processo de transformação que (em termos históricos) costuma funcionar como reacomodação e otimização do sistema. Então, penso que é preciso elaborar uma ideia de crise que possa ser usada, na medida do possível, contra os desajustes provocados por aqueles que mais se aproveitam das reacomodações, aqueles que inclusive reivindicam a crise por oportunismo (por exemplo, como argumento para retirar a literatura dos currículos), no fundo, para gerar mais crise, aprofundar o desequilíbrio e a injustiça.

Você me pergunta o que penso do boom de pequenas editoras, do aumento de edições de autor, da multiplicação e da diversificação dos tipos de presença da poesia, hoje. Ao contrário de alguns colegas, vejo isso com simpatia. Para quem faz crítica literária, entender o conjunto daquilo que acontece hoje é um problema. Porém, do ponto de vista da poesia, da presença social da poesia, a proliferação é uma riqueza. Estamos em acordo sobre isso, claro. O que me parece fundamental é entender que há complementaridades onde parecem existir apenas relações de força. Claro que, nesses diferentes modos de existência, de prática e de vivência da poesia, há conflitos de interesse. O mérito desses conflitos precisaria ser analisado caso a caso. Mas, de modo geral, vejo a diversidade de razões, de lugares, de iniciativas como indício de que a poesia permanece coisa “viva” (para retomar sua palavra). Do ponto de vista da dinâmica social, elas se confirmam, ainda que em determinados contextos possam estar em litígio.

Já do ponto de vista crítico (da compreensão do sistema, digamos), acho que a diversificação não é um valor em si. Seria necessário dar rigor e inteligibilidade a certos fenômenos, mostrar sua consistência estética e histórica, além de seu interesse público. São coisas que demandam muito trabalho, frequentemente trabalho longo. Quem aspira a ter essa voz crítica precisa assumir que o trabalho deve ser feito, e que os espaços para isso devem ser continuamente negociados. Há uma enorme onda conservadora, atualmente, que alguns interpretam como inercial, e outros como reação, isto é, como consequência das aberturas já conquistadas. Se o objetivo é aprofundar os movimentos de abertura, é preciso levar em conta a complexidade do processo.

A “poesia de luta” é um recorte, uma dessas formas de (re)organizar a tradição poética. Bem interessante esse seu projeto “Trunca”, que procura dar visibilidade a autores latino-americanos pela via da tradução. Na crítica literária, já é um tema antigo, sobre o qual muita tinta foi derramada. Não gosto de entrar na discussão pelo prisma da falta de “qualidade”, de valor intrínseco. Por outro lado, constato que, em muitos casos, de dentro da militância, o fenômeno da poesia acaba sendo visto como mera instância da luta política, e por vezes como um sucedâneo, uma compensação melancólica à perda ou à impossibilidade da própria luta. Acho que há um problema aí. Às vezes, a prática da poesia contradiz inclusive o modo de falar sobre a poesia e de justificá-la: pensava nisso outro dia, lendo com meus alunos poemas de Alex Polari de Alverga, que acho que você conhece, prisioneiro político durante a ditadura militar, comparando o que ele dizia nos poemas com o que ele dizia sobre sua poesia. Acho que a poesia de luta precisa ser pensada também como poesia, como modalidade de poesia, no contexto de uma linguagem e de tradição.

Para tentar resumir um pouco bruscamente uma questão complicada, diria que a poesia é parte do real. A poesia não é apenas um modo de exprimir o real, não é a vacância do real. A poesia, o imaginário, é uma forma de vida. Há uma contradição pulsante quando arte e realidade são colocadas em planos diferentes. E acho que não preciso insistir muito nisso. Bastaria lembrar a síntese exemplar dessas duas instâncias que você faz, pessoalmente, vivendo a poesia, ritmando o poema como parte da própria luta – uma luta contra a injustiça, contra certas modalidades de autoengano, contra a indiferença.

Para quem é poeta, a ideia de realidade não deveria preceder o poema. Não deveria haver aí uma hierarquia de princípio. Artista não é aquele que dá forma à realidade? Por motivos semelhantes, não faz muito sentido para mim uma oposição de princípio entre “realidade interior” e “realidade exterior”, entre a matéria do sentimento e a matéria política. Há política no quintal da minha casa, assim como há uma sintomática pulsional, pessoal, na luta política. A questão é como essas relações se ordenam num poema: se a intimidade é capaz de constituir uma figuração ética, se a luta é capaz de absorver as contradições pessoais etc.

Sinto que a conversa foi para um lado muito abstrato, mas não queria concluir sem comentar esse ponto.

Como você notou, há diferentes tons na minha poesia, mas talvez a figuração da dimensão pessoal se sobressaia. Dentro dessa figuração, a “distância” (da paisagem) não se opõe à relação com o outro; se ela é imposta por limites, muros, portas, cercas elétricas, idas e vindas para dentro e para fora, a dimensão política está efetivamente colocada. Colocada na sua dificuldade. Se aplico certo pathos à jardinagem, não é por sentimentalismo ou por misticismo (por tomar poesia como quem toma a ayahuasca do quintal), mas porque me interessa flagrar ali o drama da minha constituição como sujeito e, portanto, minha relação com o outro. Não sou necessariamente o herói dos meus poemas. Penso sempre nas impossibilidades e nos processos de exclusão que estão envolvidas nas minhas ações.

Acabo de escrever um texto que se chama “Cemitério de leucenas” (leucena é uma árvore muito comum aqui em Sousas, uma planta invasora, que se multiplica rapidamente). Essa é a última parte do poema:

Um cemitério de leucenas. No início era a leucena. A leucena cobria tudo. A leucena era inelutável, um vasto mundo de galhos intrincados. Dispostos em declive, em meio a pedras e jararacas. Foi preciso domesticar a leucena. Cortar, arrancar, triturar. Antes com força e alegria, concentração e estudo. Com um sonho de leveza. De volta ao fim outra vez me curvo, caio de joelhos, saio ferido. Cada vez mais a distância se impõe, as forças me medem. Cada vez mais me desafia em dias de chuva, a roupa toda molhada, com um gesto de raiva, lançar nesse cemitério um feixe de restos. Chove intensa e abundante a chuva de verão. O coração dispara, ofegante, com um leve escurecimento da vista. Estou vivo. Luto com leucenas. Elas me conquistaram. Eu as reconquisto. Somos um ecossistema. Ainda morro por elas. Ainda acabo morrendo em cena.

A “cesura” poética (a instância do ritmo, ainda que na prosa) é “íntima e histórica”, como você diz. A realidade é vista como alternância de cortes (“censuras”) e continuidades que pode ser descrita poeticamente. O sujeito se constitui ali, nesse ritmo. É preciso civilizar, abrir uma senda, combater a generalização daquilo que ameaça, mas também levar em consideração aquilo que me excede.

O que quero dizer é que a poesia pode ser política sem ser necessariamente ativista, explorando e assumindo seus impasses, sua estrutura ética. Claro que muito frequentemente a poesia está engajada na ideia de justiça social (não me consta que os poetas defendam a injustiça, a não ser involuntariamente). Mas minha afinidade com sua militância vem mais do fato de que, ao se opor à opressão, ela possa se opor também à anulação do outro.

A poesia tem tudo a ver com a reciprocidade, com a escuta. Então, prefiro pensar que a poesia é sobretudo correspondência, no sentido que disse acima, ou seja, há poesia quando me dirijo a alguém, pessoalmente (ainda que não o conheça, ainda que se trate virtualmente de um coletivo), e ele me ouve como destinatário específico daquela mensagem (ainda que não me conheça, ainda que isso não nos reúna, etc.).

Sem minimizar todas as situações em que a injustiça precisa ser denunciada e combatida, eu reescreveria a frase que você cita em sua carta (“Isso tampouco é vida”), para dizer, sobre a poesia: “Isso também é vida”.

Com um abraço,

Marcos

Imagens: Marcos Siscar

Carta 53 – De Maria Teresa C. R. Moreira para Adriana Zapparoli

… em resposta à Carta 41.

Carta para Adriana
(02/11/2020)

Ah… a força e a delicadeza dos detalhes, sempre tão eloquentes…!

Você fala, eu falo, falamos todas e todos de tantas e inumeráveis maneiras, e sua carta me chegou assim, Adriana: falando em/de mil formas! Nossos corpos, âmagos e palavras femininas se encontram, na diversidade fundamental que somos. Quanta comunicação!!!

De forma que te cumprimento e te agradeço, sem comprimento, curtinho e curtindo: GRATA!!!

Você me entregou, Adriana, incontáveis ganchos em cada parágrafo! Ali, todos se oferecendo para serem agarrados em reflexões e pensamentos femininos, humanos, poéticos…Daria prosa para algumas garrafas de café!!! (Você gosta de café…?!?)

Logo de cara, cara amiga, te ofereço um dedo de poesia:

ESPERANÇA DOS POETAS
Com os pés fincados
Nesta desgastada amada terra
Sentindo o cheiro ocre
Da pesada tempestade que vem
Com as mãos armadas de flores
Colhidas em cada humano encontro
Com o útero ressecado
Pelas tantas pedras engolidas
Com as unhas cravadas
No seio que há tempos nos engole
Olho
Olhamos o céu.
Não nos esquecemos
Não!
Não nos esquecemos que ali
Logo além das nuvens
- tão cinzamente carregadas...! -
O céu é na verdade
De verdade
Repleto de possibilidades azuis!

Com esse gosto na boca, Adriana, lembro-me que você me perguntou sobre os grupos poéticos, se me divirto ou me intrigo com eles. Pois te digo: todas as alternativas! Meu fazer poético, embora tão pessoal, se faz fundamentalmente em ligação com outras poetas e escritoras, outros poetas e escritores, amigas e amigos. Não previa muito isso, quando comecei a escrever poesia de maneira quase terapêutica – tão ontem…! Mas a caminhada me ofereceu companhias, de alma e de versos, diferentíssimas de mim – estando justamente aí a riqueza, ou parte dela. Nos ajudamos, nos fortalecemos, nos ouvimos, damo-nos pitacos, abrimos caminhos, rimos e choramos, sempre dando à luz a poesia! Mulherio das Letras, Mulheres e Poesia, grupo de Escrita Criativa, Remas, Portal do Poeta Brasileiro, Projeto Ondulações: braços dados que me lançam e aos quais lanço cada vez mais alto e mais profundo!! Campos de girassóis!!!

Sua carta, poeta, me pareceu uma visita de vagalume em noite sem luar….! Trouxe-me flashes de luz, pulsando sem que eu previsse o trajeto, pincelando a paisagem aqui e ali, e indo-se embora para outras paragens, deixando-me com os lampejos a cutucarem-me olhar, pensamentos, sentimentos…!

Caríssima, adorei os mimos!! E a folha amarelo-cheguei no envelope roxo com os adesivos azul e laranja, com sua letra de mão – e coração! – farta, firme, forte, feminina!!! Repito: ah, a força e a delicadeza dos detalhes, tão eloquentes!!

E é assim, sinto, que nossas palavras devem chegar, chocar, carinhar, gerar vida nestes nossos tempos tão necessitados – e houve tempo que não o fosse…?!?!

Sinto-me mais à vontade para expressar-me em versos:

Urgência!
Preciso dizer
O que vejo eu
Com minha voz
Única
Própria
É necessário
Sem ser preciso
Meus netos esperam
Sem o saber
Ainda

Eis um pouco do que sente aqui essa poeta, mulher, mãe, avó… ressoando suas palavras poéticas, instigadoras….!

E não me alongarei, pois não senti delongas em seu trabalho, Adriana, tampouco em sua carta. Tive a impressão de que você prefere provocar do que dizer, e quando diz, usa palavras poucas e fortes e suficientes para plantar poesia e humanidade e beleza e liberdade de pensar. De modo que já preparo minha despedida. Agradeço novamente, sinceramente, o diálogo! Seguimos pelas campinas, espalhando versos, experimentando poesia, ecoando as vozes das mulheres, construindo o que cremos. E que possamos vez ou outra nos dar as mãos!

Xícara sobre a mesa
Anseios também
Bem à vista
Partilhados
Fervendo
Escorremos pela cadeira
Pelos poros e versos
Sob o canto de pardais
-e bem te vis que bem que viram!-
Numa quaseinfinita manhã
Sentadas numa varanda in-comum!

À disposição,

Maria Teresa!

PS – Envio junto com esta carta, meu carinho e um pouco dos “meus ares”. Que lhe refresquem!

Imagens: Maria Teresa C. R. Moreira

Carta 52 – De Jeff Vasques para Samuel de Monteiro

em reposta à Carta 40.

Bem sabes, matuto: quem conta um conto, aumenta o canto e quem canta o povo, povoa o espanto. Que esta carta, Samuel, não descarte o povo, nem faça pouco do seu pranto, mas multiplique seu canto como um galo que lança a outro a manhã-horizonte chegando.

Companheiro Samuel, que felicidade imensa me inundou o peito ao ler sua carta (dessas de sertão virando mar!). Caudalosos esses teus sonhos, cumpádi, e tua fome de vida, desse ser tão nordestino que te habita! Ah, meu amigo quixotesco… que vontade de sair a conhecer tua terra, no Cariri, você a me apresentar tantos outros quixotes ainda a cavalgar no semiárido… ouso brincar que Cervantes foi dos primeiros cordelistas, com seus folhetins populares! Caro poeta, não sabe como nutro uma paixão profunda pelo Nordeste, essa nação! Já viajei por essas bandas, amante que sou de toda sua cultura popular, mas sonho voltar, com lentidão, pra conhecer melhor os ritmos de suas falas, os temperos de suas comidas, o chão de seus sonhos. Amo, dali, de tudo um pouco, suas paisagens, seu povo, a cultura viva que floresce à revelia desse agreste apoio que lhe cerca: o repente, os côcos e maracatus, as danças populares, os cantos coletivos, os bonequeiros, mamulengos, brincantes e palhaçadas… tanta coisa! Cheguei, uma época, a estudar mais a fundo o cavalo-marinho, que você talvez já tenha assistido por Pernambuco. É das coisas mais incríveis que já vi: dança, música, teatro, poesia, artes plásticas tudo junto, noite adentro, zombando das dificuldades do diadia e, ao final, cantando a ressurreição… do boi, da esperança. Não se vê algo assim nos teatros, mesmo nos mais badalados de São Paulo! E tudo construído desde o povo, pelos cortadores de cana, a partir dessa riqueza que brota dentre a miséria, essa maravilhosa peleja da imaginação contra a dura realidade. E, claro, a literatura nordestina me contamina, com seus Zé da Luz, Patativas, Zé Limeira, passando também pelos mais consagrados pela academia, Augusto dos Anjos, João Cabral, Ferreira Gullar… Nordeste é um mundo, meu caro Samuel, você bem sabe! Bah, e Elomar, então? Esse menestrel saído do cruzamento das barrancas do rio Gavião, lá donde só bodes velhos vivem, com a Idade Média e seus cavaleiros nobres e errantes… são tantos pavões misteriosos que nascem dessa terra tão carente de atenção, irmão… triste que tudo isso é tão pouco conhecido pra cá… o Brasil não conhece os brasis… Mas que feliz poder Campinas contar com essa ponte permanente de teu coração cearense aqui, tua figura viva e tua arte tradicional e renovada!

Fiquei lisonjeado desde o início de sua carta, Samuel, por me chamar de “companheiro”… sabemos, poeta, palavras não são apenas palavras, carregam valores, horizontes, compromissos… e essa palavra, por mais desgastada que esteja, ainda é valiosa pra mim, símbolo de quem busca, junto com outros, construir humanidade. E ainda que pouco nos conheçamos, já me coloco ombro a ombro contigo na construção desse sonho. Geir Campos, poeta que admiro, se perguntava sobre quantos, que marcham pela vida – como quem carrega uma estrada – teriam essa sorte de ter amigo, companheiro, camarada. Que não falte o encontro logo após a pandemia e, desde já, te convido prum baião de dois e uma prosa cheia de poesia! Logo que abri sua carta, hermano, e comecei a ver os cordéis que me presenteara e ler seus títulos, soube que se tratava dum camarada, “Marielle, na luta e quanto vale uma vida”… e não teria como ser de outro jeito, não é, amigo? A literatura popular, o cordel, sempre nasceram desse chão seco, rasgado e regado a lágrimas. O cordel sempre esteve carregado de crônica política e você não faria diferente. E, claro, nasce também das lendas, do imaginário fantástico que se espalha boca a boca, esse vírus desinfeccioso, conto que aumenta um ponto e faz muito do pouco, prazer de brincar com as palavras e com as narrativas, de flertar com mistérios e com o tinhoso, que tudo isso é direito de todos!

Ah, meu querido Samuel, me encheu o coração ver a menção ao palhaço em sua poesia! Não acredito que isso seja à toa, o palhaço é uma figura tradicionalmente popular, assim como o cordel, presente ao longo da história da humanidade, sempre indo aonde o povo está. Me interessa muito conhecer mais dos palhaços do Nordeste: Mateus e Bastião ou ainda os que abrem alas pros reisados, os brincantes. Acredito que meu palhaço tem alguma conexão com eles, já que se trata dum palhaço vagabundo (mesma linhagem do Carlitos, de Chaplin). Magrólhos, meu palhacito, assim como esses “amarelos espertos” dos cordéis (como João Grilo ou, ainda, Pedro Malasartes), vive na miséria e precisa usar da sua esperteza pra sobreviver! E olhe só, aí mais uma conexão com a cultura de sua terra, caro poeta, no “Circo da Miséria”, que construí a partir de um trabalho com a população em situação de rua, o “maior desespetáculo da Terra!”, Magrólhos começa tocando pandeiro e jogando versos, como nas emboladas! Aqui alguns versinhos do que ele diz ao desrespeitável público passante:

Miséria mesmo é o povo
vendo o circo pegar fogo!

(Refrão repetido duas vezes)
Senhoras e senhores,
senhoritas e rapazes,
meninas e meninos
e demais miseráveis...
Vai começar dentre em breve
mais um show deste circo!
Não tenham medo, cheguem perto,
que a miséria não é transmissível...

(Refrão)

No Circo da Miséria
ninguém paga para entrar,
muitos rezam é pra sair...
e outros gritam pra fechar!
Artista da fome é o que não falta
neste que é o maior circo do planeta:
o picadeiro é o chão duro de praça
e a lona, o céu cheio de estrelas!

(Refrão)

Como você vê, a cultura lá de riba é um norte (um nordeste?) que sigo nessa minha senda do diálogo popular, que é o que busco com minha arte como um todo, seja na poesia ou na palhaçaria!

E que forte tua trajetória, hein, Samuel? Desde do interior do Cariri Ocidental, trabalhando em gráfica, depois vindo pro Sudeste, nessa migração que tantos conterrâneos teus realizam na busca de melhores condições, e trabalhando em fábrica, e, agora, fabricando palavras, histórias, como na gráfica, mas com suas impressões agora. Sabe que, recentemente, lançamos pelo coletivo editorial que montamos aqui com alguns camaradas, a Trunca Edições, uma poeta operária! Imagina, poesia nascendo de dentro da fábrica, desse encontro bruto entre trabalhadora e patrão, entre metal e carne, graxa e sangue. É ali, em seu ventre de engrenagens, que habita esse triste Sísifo, esgotado, que entre rangidos, vapores e apitos, repete o mesmo e eterno movimento, produzindo toda a riqueza do mundo. Lançamos a poesia operária da Golondrina Ferreira! Poeta das mais necessárias no cenário atual, assim como tua poesia, meu caro, que fala diretamente ao coração do povo! Não há espaço onde a poesia não possa germinar, até mesmo nos cárceres, sob tortura, diante da morte iminente, ela renasce pelas mãos dos poetas combatentes, como Alípio Freire, Alexis Polari, Lara de Lemos e tantos outros retratados na Antologia de Poesias de Luta da América Latina que organizamos… Por isso, por mais que o coração desanime com essa pandemia de ignorância em que vivemos, confio que a poesia vai rebrotar: “sei que surgirás / veludo clandestino em meu peito / e entorpecerá meus olhos / e sussurrará desejos / e abrirá meus lábios / com seus lábios / dentro”.

Querido poeta cordelista, sua carta emana irmandade e tuas palavras me deram a mão e já me ajudaram a levantar o olhar pras batalhas vindouras! E espero te encontrar nessas semeaduras, Samuel, nas palavras e nas ruas, contra esse vírus tenebroso do ódio que sufoca toda poesia! Como você bem diz, sou da paz, mas da paz que se faz com voz ativa e ação coletiva, não da paz em que nos querem, dos cemitérios, dos isolamentos profundos… (que vão muito além do coronavírus). Suas palavras me fizeram lembrar o que eu mesmo já disse em certo poema, das fissuras por onde nossa humanidade pode se alastrar e fincar raízes e tomar todo o muro cinza:

do impensável
nasce o
impossível
do impossível
se nutre o
improvável
do improvável
cresce o
imprevisível
do imprevisível
floresce o
o inesperado
e do inesperado,
eis seu fruto,
- doce -
impassível.

Que possamos colher, Samuel, desse fruto maduro e que a poesia chegue, assim, de mão em mão, de boca em boca, como num cordel teu, recontando as histórias de tempos sombrios que superamos!

Abraço carinhoso,

Jeff

(véspera das eleições pandêmicas de 2020)

P.S.: Fico no aguardo pra tomarmos dois dedos de prosa e uns tantos de poesia!

Imagem: Jeff Vasques

Carta 51 – De Adriana Zapparoli para Mariana Paiva

em resposta à Carta 39.

Campinas-feliz, em novembro de 2020, ou não, passarinho de colar.

Prezada Mariana-Doce,

O dia está nublado e eu penso em responder sua missiva. Sabe, de sua carta, o que me trouxe bem estar foi uma leve brisa. Brisa de favos e afagos. A rotina me domina; tenho tomado atitudes além da saliva transbordando nos cantos da boca. Para ser sincera converso pouco. A poesia vem tomando o meu raciocínio. Não dura muito tempo e, quando surge, eu tendo oportunidade, redijo, uma carta para uma amiga. O sol da janela traz um reflexo verde limão-musgo. É um verde abilolado e cansado de raios. Mas o verde é forte e não se torna mais claro pelo excesso de luz-luar-solar. Ouço barulhos dos carros e das motos que trafegam sem parar no limite do asfalto. Aqui há apenas o som do ventilador. Gosto de ventiladores… ventila-dores, ventila-dor, venti-la-dor… Em sua carta você me pergunta sobre a poesia… Existe poesia na dor, na tristeza, nos escuros. Não tenho receio de encontrá-la. A poesia da beleza, do amor, favorece a poesia do lugar-comum. A poesia de sempre. A poesia mais do mesmo. A poesia me too.

Leio os escritores: são todos escritores do gênero poesia. Não me parecem poetas. Eu não sou poeta. Eles não o são. Para sermos poetas, nos seria necessário muito mais alma e cadinhos de sublimação. Claro, você pode discordar, mas no momento, é assim que concebo a poesia contemporânea. Todos somos aprendizes. Todos escrevemos muito mal. Algum escritor de poesia se sobressai um pouco mais nesse estilo. Outros menos. Sou avessa as leituras que me trazem memórias de escritores do passado. Então, talvez seja por isso que venha a experimentar tanto na escrita, e confesso: devo reescrever sempre. Dos autores contemporâneos… Sobre alguns poemas me chamam a atenção. Outros nem tanto… e “ la nave va”… mesmo assim, eu insisto na escrita e na leitura. Tive poemas publicados em outros países… Tive poemas que eu tentei me expressar em outro idioma. Experimentar literatura é sempre divertido. Também redijo as dores. Você acompanha as dores femininas, Mariana? Penso nas mulheres ancestrais que trago; nessas memorias que trazem o meu DNA. Fico pensando que sou a reencarnação dessas mulheres, que me incorporam nessas outras vias por meio das moléculas de carbono e, também, naquelas mais próximas que (des)conheço. Passarei essa vida gritando sobre a igualdade feminina. Mas afirmo que, com a chegada da COVID caímos e, ainda, rastejamos. Nossos sonhos estão criopreservados… Nossos sonhos, Mariana, que eu espero, não tenham medos de escuros, assim como eu ou você.

Estive andando pelas ruas. E não gosto nada da sensação. Havia um vírus na espreita… A sensação era essa. Não poderia haver descuido. Quem sabe venha a ter uma crise psicótica meio a esse inferno. Opto por ambiências abertas. Opto por espaços onde minha vida pareça mais protegida… enquanto segue a entropia. Sigo. Sigo tentando organizar o caos do meio ambiente interior. É por meio da (des)ordem a minha vida se mantém. A desordem nos obriga novas formas de ordem, um caos ordenado. Porque o tempo só anda para frente, e vivemos até o dia da produção da entropia máxima. E eu não aprendi a viver, ainda…

[sobre braços e pálpebras existem farelos castanhos e restos indigestos da febre e do repouso. existem conjuntivite, coriza, perda do apetite e existem flores do dia em sonho do amor, da bacia da boca

(que não existe)…

inexiste entre um fôlego e outro, entre o egoísmo e outros gestos de orelhas superiores.

centelha que existe, o fígado e o pâncreas que assistem a parte interna das bochechas, o exantema de Koplik e um cardio-peito convoluto que deflagra horrores.

insistem…

nos corpos copro-cavernosos de ogros, resiste o que se vê na encefalite (o que se vê, e não existe) na vertigem e dentro da bacia de sua boca

-fosso: o amor

que inexiste.

então, venha, venha meu amor, porque eu lhe mataria todos os dias se preciso fosse…]

Vejo fotos e admiro o seu sorriso!

Como está a semana em terras de barão? Quantos momentos felizes eu tive nessas terras de urso-polar e cobras-cegas. Existem baronesas e mamão papaia. E é tudo tão areia… O amor de minha vida eu vivi aí…

Um abraço, flor Mariana

Adriana Zapparoli

Imagem: Adriana Zapparoli

CARTA 50 – De Samuel de Monteiro para Marcos Siscar

… em resposta à Carta 38.

Campinas, dia duzentos e trinta, do período da quarentena, do ano dois mil e vinte, depois de Cristo.

Meu caro amigo Marcos Siscar!

Que prazer falar contigo!

É sempre mais difícil lamber o fundo de um prato de sopa”.
(Marcos Siscar, em “isto não é um documentário”)

Devo concordar contigo. É sempre mais difícil lamber o fundo de um prato de sopa. Isso faz-me lembrar do sertão. Da seca, da escassez, das tantas sopas ralas, em pratos desbotados, que tomamos, naqueles tempos áridos.

Eu leio algo assim e já crio um sentido para mim. A poesia tem disso. A gente escreve de um jeito. O leitor aproveita de outro. Ao ler este poema crônica, me veio um mote, que desenvolvi assim:

Quantas vezes negaram a guarida
Para aquele que pede o que precisa
Como a dor quando chega e nem avisa
No penar desta estrada tão cumprida
Tem aquele que nega até comida
E escreve tratados que nem sabe
Uma gente que implora que acabe
As distâncias existentes neste mundo
É difícil lamber num prato fundo
O restinho da sopa que nos cabe

Tem aquele que arrota caviar
Mas carece de amor e mais leveza
Desconhece o quão triste é a pobreza
Insensível, se nega em ajudar
Tem aquele ligeiro em criticar
Entre estes, não há quem não se gabe
Mas quem sabe, o orgulho até desabe?
E reflitam ao menos um segundo
É difícil lamber num prato fundo
O restinho da sopa que nos cabe

Meu amigo Marcos, me diga uma coisa! Que carta foi aquela que escreveu? Li e reli algumas vezes e me senti contemplado demais com a forma como fala de nossa arte. De nossa cultura. Senti respeito. A palavra tem disso, não é meu amigo? Ela nos fala aquilo que queiramos que ela fale.

Percebo em você (posso tratar-lhe assim? Mais próximo?) um traço forte de alguém estudioso, culto, zeloso com aquilo que faz, comenta e expressa. Sua carta entrega esta sua característica de pesquisador. Ao mesmo tempo, talvez por ser poeta e escritor, existe uma sensibilidade clara na palavra dita. Não se trata apenas de conhecimento e informação. Tem muito de sentir, naquelas palavras, meu amigo. Muito mesmo!

Se eu lhe contar que sou bem resistente à publicação de um livro com meus poemas, você acreditaria? Pois é. Sou. Já até me propuseram fazer um apanhado com meus cordéis, com as xilogravuras do mestre J. Borges, de quem tenho a alegria e honra de ser amigo e parceiro de projetos, e eu recusei. Por ora.

Quando decidi me assumir cordelista (porque nem sempre foi assim), eu quase que parei de escrever outras formas poéticas e me concentrei a este estilo. Quase que integralmente. Entre 1983 e início dos anos 2.000, eu escrevia um pouco de tudo. Sonetos, poesia contemporânea, crônicas, contos e aqui e acolá, um cordel. Até que um dia, Marcos, algo aqui dentro me cobrou:

Samuel, está na hora de você resgatar suas origens! Você precisa continuar o legado de seu avô e do seu pai.

Ambos “Asa Branca”. Meu avô era só Asa Branca. Meu pai acrescentou “do Ceará” na sua alcunha. Não quis ser Asa. Quis ser de Monteiro. E cá estou! “Cordelizando”, com alegria e paixão.

Uma das coisas que caracteriza a literatura de cordel é a simplicidade e praticidade das edições. Geralmente, os folhetos são em papéis baratos, sendo mais comum encontrá-los com 8 páginas. Algumas vezes encontramos alguns com 16 páginas e menos comum são os de 32 páginas. O folheto menor e mais popular é vendido em feiras livres, feiras de cultura e arte, em espaços de cantorias, em Casas do Norte, e por aí segue. Custam pouco ao consumidor. Um folheto de cordel é extremamente acessível. Por isso, prefiro assim e evito por ora, o livro. Me agrada este formato quase medieval, típico nos cordéis. Como um trovador dos tempos quixotescos, da cavalaria andante, declamo minhas poesias nas aldeias e atraio o interesse dos passantes.

Esta pandemia deixou-me bem criativo. Faltaram-me outras coisas. Sobraram inspiração e um desejo enorme de tornar melhores os dias das pessoas.

O primeiro cordel que escrevi neste período da pandemia foi justamente uma receita de enfrentamento do que viria dali em diante. O mote era “comece a fazer em casa, tudo o que faria fora”. Fiquei pensando, quantas pessoas não sabem o que é “viver em casa”. Sempre em conduções, veículos, escritórios, aeroportos, repartições, escolas, universidades, metrôs, bares, restaurantes. Quase nada em casa. Percebeu? Que doido isso! O lugar que mais deveríamos gostar de ficar é onde menos ficamos e quando esta situação se tornou irreversível, meu amigo!, foi confusão, viu? Foi nó na cabeça. E o cordel, com este mote, é quase um receituário. Separei duas estrofes, para mostrar-lhe:

Medite, leia, estude
Converse com a molecada
Conte história e piada
O móvel da sala, mude
Das panelas, tire o grude
Mande essa tristeza embora
Toda manhã tem aurora
Pois o dia não se atrasa
Comece a fazer em casa
Tudo o que faria fora

Bote uma mesa na sala
Uma música ambiente
Converse com sua gente
Aquela prosa que embala
Fale daquilo que fala
Que o seu coração adora
Aproveite cada hora
Com o filho embaixo da asa
Comece a fazer em casa
Tudo o que faria fora

Preciso confessar uma coisa. Ao ler sua carta, me deu uma vontade de mudar a minha ideia e escrever um livro. E se isso acontecer e quando acontecer, já antecipo, vou pedir-lhe para escrever o prefácio. Será motivo de honra para mim, ter palavras tão lindas abrindo uma publicação de poesia popular. Um patrimônio cultural!

Quando citou João Cabral de Melo Neto, que tanto admiro, lembrei-me de outro grande poeta que era admirador da poesia popular, principalmente aquela dos repentistas, como o meu pai. O pernambucano Manuel Bandeira, certa vez, fez uma bela homenagem aos cantadores, registrado no seu livro “Estrela da Tarde”, citando os irmãos Otacílio e Dimas Batista.

Pensar que eu cresci no meio deste povo todo. Nossa casa, quando vivíamos em São Paulo, servia de hospedagem para os poetas que vinham do sertão, para festivais na capital. Então tive a alegria de conhecer muito repentista incrível. Quando vou à Monteiro, aproveito para ir a uma série de cantorias de repente. É um deleite. Promovo algumas aqui em Campinas. Lá no Bar da Dalva, do meu querido amigo e nordestino Manoel Carvalho. Pai do Rafa Carvalho, um irmão de outras vidas e da arte. Prometo que lhe chamo, na próxima, tão logo nos seja possível!

Meu nobre amigo. Poeta e professor. Que tempos são estes? Imagino a sua luta e a correria que deve estar enfrentando para cumprir um papel tão importante na vida das pessoas. Durante este período, perdi as contas de quantas videoconferências voltadas para professores, diretores, alunos e grêmios estudantis eu participei. Nós, escritores, poetas, contadores de histórias e outras artes ligadas à palavra, tornamo-nos respiro para professores e professoras, nestes tempos sufocantes. A educação, ao lado da cultura, são pilares da construção e manutenção de uma sociedade. Escrevi sobre isto no mote ‘somente a educação transforma a vida da gente”. Nestas duas estrofes falo das agruras que enfrentam:

“Tem lugar que não tem sala
Outro que não tem transporte
Escolas no extremo norte
Lugar que a justiça cala
Onde o povo, não tem fala
Onde o medo é recorrente
Pra qualquer sobrevivente
Saber é revolução
Somente a educação
Transforma a vida da gente

Tem sala que não tem nada
Só o amor que inspira
E quem educa, se vira
Para a aula ser bem dada
Uma criança educada
Transforma aquele ambiente
E um futuro mais potente
Surgirá na região
Somente a educação
Transforma a vida da gente

Despeço-me agora. Primeiro agradecendo ao universo pela oportunidade de conhecê-lo por aqui e desejando que logo possamos nos conhecer pessoalmente, no nosso Sarau de Boteco ou noutro espaço de cultura. Será uma alegria abraçá-lo e compartilhar um tempo de prosa com o amigo.

Que os dias sejam mais leves, que a inspiração seja sua companheira e que possamos tirar algum aprendizado desta loucura toda.

Fique bem, mestre!

Um abraço sertanejo!

Do cordelista Samuel de Monteiro, do Cariri Ocidental Paraibano, vivendo em Campinas.

Imagens: Samuel de Monteiro

CARTA 49 – De Mariana Paiva para Maria Teresa C. R. Moreira

em resposta à Carta 37.

Campinas, novembro de 2020,
esse ano que se arrasta ao mesmo tempo
em que passa tão rápido

Maria Teresa querida,

Você fala de gratidão e de caminhos cruzados. Eu te escuto além de te ler. O ano já vai longe mas ainda tivemos a oportunidade de trocar essas palavras. Sim, as cartas também me seguram, me acolhem nesses tempos tão fluidos. A você também, imagino. Cartas-cordas, cartas-abraços, cartas-cama-da-gente. Você já assistiu Totoro? É uma animação bem linda, e Totoro é exatamente um bicho muito fofo ao qual as menininhas recorrem num momento de dor. É Totoro que as leva para um passeio num ônibus-gato, que ajuda as meninas a sonhar quando a vida dói demais, é sobre ele – que, como eu disse, é muito fofo – que elas podem deitar e se aconchegar. Tipo um ursão. Confesso que nesses tempos duros me peguei sonhando com um Totoro pra abraçar e passar logo todas as dores do mundo, viajar numa noite qualquer num ônibus-gato, uma nesguinha de fantasia em meio a tantas notícias de dor, um estado de trevas que dura um dia e mais um outro e mais alguns. Uma escuridão literal, um Amapá inteiro de dor.

E sua carta tão cheia de poemas, olhe, nem sei bem como vou me separar dela em algum momento. Um Totoro. Papel então também acolhe? Na tintinha azul clara-meio-nuvem que você me escreveu cabe um mundo. Você fala de ancestralidade e eu penso tanto, tanto nisso. Você poetizando a menopausa e eu ainda ali, aos 10 anos, parada em frente à calcinha manchada entendendo pouco entendendo nada. Me sentindo ferida antes de me saber mulher (ou então por isso mesmo), até que minha mãe viesse e me explicasse. Cheguei cedo demais. Mas isso não se diz ao sangue que nutre a terra: Volte que ainda não é hora de você, volte que ainda não sei usar casacos amarrados na cintura porque ainda não inventaram os absorventes com abas, volte que ainda não estou pronta. Isso não se diz porque pronta pra ser mulher num mundo como esse acho que ninguém em pleno juízo pode estar. Então que seja. Uma menininice meio interrompida por um sangue escorrendo pelo meio das pernas: não é bem assim a vida?

Você que é tão bonita e se derrama em palavras há de entender. Você que usa vermelho como se fosse sua roupa de ser mais você, tom-natural e muito seu. Há culturas em que o aprendizado das mulheres é marcado por uma pedra de turquesa. E então as mulheres que já não sangram passam a ensinar, a ser ensinadoras de como viver às que aprendem. Quem ensina ganha então outra pedra, fica com duas. Um cálice de vinho oferecido à terra no momento em que o útero se lembra de como era sangrar.

E você que escreveu que “amando/amando/amando/assim salvamos o mundo!”. E que escrever uma carta é um jeito muito grande de amar alguém, de amar o mundo, espalhando faíscas cintilantes por onde passa. Obrigada. E que venham poemas, sejam eles quantos forem, página após página, porque Mariana é um pouco Maria também, e quero desde já que o tempo me entregue uma delicadeza assim como a sua, vermelha

um beijo
e a gente ainda se
encontra num jardim por aí,

Mari

Imagem: Mariana Paiva