Carta 52 – De Jeff Vasques para Samuel de Monteiro

em reposta à Carta 40.

Bem sabes, matuto: quem conta um conto, aumenta o canto e quem canta o povo, povoa o espanto. Que esta carta, Samuel, não descarte o povo, nem faça pouco do seu pranto, mas multiplique seu canto como um galo que lança a outro a manhã-horizonte chegando.

Companheiro Samuel, que felicidade imensa me inundou o peito ao ler sua carta (dessas de sertão virando mar!). Caudalosos esses teus sonhos, cumpádi, e tua fome de vida, desse ser tão nordestino que te habita! Ah, meu amigo quixotesco… que vontade de sair a conhecer tua terra, no Cariri, você a me apresentar tantos outros quixotes ainda a cavalgar no semiárido… ouso brincar que Cervantes foi dos primeiros cordelistas, com seus folhetins populares! Caro poeta, não sabe como nutro uma paixão profunda pelo Nordeste, essa nação! Já viajei por essas bandas, amante que sou de toda sua cultura popular, mas sonho voltar, com lentidão, pra conhecer melhor os ritmos de suas falas, os temperos de suas comidas, o chão de seus sonhos. Amo, dali, de tudo um pouco, suas paisagens, seu povo, a cultura viva que floresce à revelia desse agreste apoio que lhe cerca: o repente, os côcos e maracatus, as danças populares, os cantos coletivos, os bonequeiros, mamulengos, brincantes e palhaçadas… tanta coisa! Cheguei, uma época, a estudar mais a fundo o cavalo-marinho, que você talvez já tenha assistido por Pernambuco. É das coisas mais incríveis que já vi: dança, música, teatro, poesia, artes plásticas tudo junto, noite adentro, zombando das dificuldades do diadia e, ao final, cantando a ressurreição… do boi, da esperança. Não se vê algo assim nos teatros, mesmo nos mais badalados de São Paulo! E tudo construído desde o povo, pelos cortadores de cana, a partir dessa riqueza que brota dentre a miséria, essa maravilhosa peleja da imaginação contra a dura realidade. E, claro, a literatura nordestina me contamina, com seus Zé da Luz, Patativas, Zé Limeira, passando também pelos mais consagrados pela academia, Augusto dos Anjos, João Cabral, Ferreira Gullar… Nordeste é um mundo, meu caro Samuel, você bem sabe! Bah, e Elomar, então? Esse menestrel saído do cruzamento das barrancas do rio Gavião, lá donde só bodes velhos vivem, com a Idade Média e seus cavaleiros nobres e errantes… são tantos pavões misteriosos que nascem dessa terra tão carente de atenção, irmão… triste que tudo isso é tão pouco conhecido pra cá… o Brasil não conhece os brasis… Mas que feliz poder Campinas contar com essa ponte permanente de teu coração cearense aqui, tua figura viva e tua arte tradicional e renovada!

Fiquei lisonjeado desde o início de sua carta, Samuel, por me chamar de “companheiro”… sabemos, poeta, palavras não são apenas palavras, carregam valores, horizontes, compromissos… e essa palavra, por mais desgastada que esteja, ainda é valiosa pra mim, símbolo de quem busca, junto com outros, construir humanidade. E ainda que pouco nos conheçamos, já me coloco ombro a ombro contigo na construção desse sonho. Geir Campos, poeta que admiro, se perguntava sobre quantos, que marcham pela vida – como quem carrega uma estrada – teriam essa sorte de ter amigo, companheiro, camarada. Que não falte o encontro logo após a pandemia e, desde já, te convido prum baião de dois e uma prosa cheia de poesia! Logo que abri sua carta, hermano, e comecei a ver os cordéis que me presenteara e ler seus títulos, soube que se tratava dum camarada, “Marielle, na luta e quanto vale uma vida”… e não teria como ser de outro jeito, não é, amigo? A literatura popular, o cordel, sempre nasceram desse chão seco, rasgado e regado a lágrimas. O cordel sempre esteve carregado de crônica política e você não faria diferente. E, claro, nasce também das lendas, do imaginário fantástico que se espalha boca a boca, esse vírus desinfeccioso, conto que aumenta um ponto e faz muito do pouco, prazer de brincar com as palavras e com as narrativas, de flertar com mistérios e com o tinhoso, que tudo isso é direito de todos!

Ah, meu querido Samuel, me encheu o coração ver a menção ao palhaço em sua poesia! Não acredito que isso seja à toa, o palhaço é uma figura tradicionalmente popular, assim como o cordel, presente ao longo da história da humanidade, sempre indo aonde o povo está. Me interessa muito conhecer mais dos palhaços do Nordeste: Mateus e Bastião ou ainda os que abrem alas pros reisados, os brincantes. Acredito que meu palhaço tem alguma conexão com eles, já que se trata dum palhaço vagabundo (mesma linhagem do Carlitos, de Chaplin). Magrólhos, meu palhacito, assim como esses “amarelos espertos” dos cordéis (como João Grilo ou, ainda, Pedro Malasartes), vive na miséria e precisa usar da sua esperteza pra sobreviver! E olhe só, aí mais uma conexão com a cultura de sua terra, caro poeta, no “Circo da Miséria”, que construí a partir de um trabalho com a população em situação de rua, o “maior desespetáculo da Terra!”, Magrólhos começa tocando pandeiro e jogando versos, como nas emboladas! Aqui alguns versinhos do que ele diz ao desrespeitável público passante:

Miséria mesmo é o povo
vendo o circo pegar fogo!

(Refrão repetido duas vezes)
Senhoras e senhores,
senhoritas e rapazes,
meninas e meninos
e demais miseráveis...
Vai começar dentre em breve
mais um show deste circo!
Não tenham medo, cheguem perto,
que a miséria não é transmissível...

(Refrão)

No Circo da Miséria
ninguém paga para entrar,
muitos rezam é pra sair...
e outros gritam pra fechar!
Artista da fome é o que não falta
neste que é o maior circo do planeta:
o picadeiro é o chão duro de praça
e a lona, o céu cheio de estrelas!

(Refrão)

Como você vê, a cultura lá de riba é um norte (um nordeste?) que sigo nessa minha senda do diálogo popular, que é o que busco com minha arte como um todo, seja na poesia ou na palhaçaria!

E que forte tua trajetória, hein, Samuel? Desde do interior do Cariri Ocidental, trabalhando em gráfica, depois vindo pro Sudeste, nessa migração que tantos conterrâneos teus realizam na busca de melhores condições, e trabalhando em fábrica, e, agora, fabricando palavras, histórias, como na gráfica, mas com suas impressões agora. Sabe que, recentemente, lançamos pelo coletivo editorial que montamos aqui com alguns camaradas, a Trunca Edições, uma poeta operária! Imagina, poesia nascendo de dentro da fábrica, desse encontro bruto entre trabalhadora e patrão, entre metal e carne, graxa e sangue. É ali, em seu ventre de engrenagens, que habita esse triste Sísifo, esgotado, que entre rangidos, vapores e apitos, repete o mesmo e eterno movimento, produzindo toda a riqueza do mundo. Lançamos a poesia operária da Golondrina Ferreira! Poeta das mais necessárias no cenário atual, assim como tua poesia, meu caro, que fala diretamente ao coração do povo! Não há espaço onde a poesia não possa germinar, até mesmo nos cárceres, sob tortura, diante da morte iminente, ela renasce pelas mãos dos poetas combatentes, como Alípio Freire, Alexis Polari, Lara de Lemos e tantos outros retratados na Antologia de Poesias de Luta da América Latina que organizamos… Por isso, por mais que o coração desanime com essa pandemia de ignorância em que vivemos, confio que a poesia vai rebrotar: “sei que surgirás / veludo clandestino em meu peito / e entorpecerá meus olhos / e sussurrará desejos / e abrirá meus lábios / com seus lábios / dentro”.

Querido poeta cordelista, sua carta emana irmandade e tuas palavras me deram a mão e já me ajudaram a levantar o olhar pras batalhas vindouras! E espero te encontrar nessas semeaduras, Samuel, nas palavras e nas ruas, contra esse vírus tenebroso do ódio que sufoca toda poesia! Como você bem diz, sou da paz, mas da paz que se faz com voz ativa e ação coletiva, não da paz em que nos querem, dos cemitérios, dos isolamentos profundos… (que vão muito além do coronavírus). Suas palavras me fizeram lembrar o que eu mesmo já disse em certo poema, das fissuras por onde nossa humanidade pode se alastrar e fincar raízes e tomar todo o muro cinza:

do impensável
nasce o
impossível
do impossível
se nutre o
improvável
do improvável
cresce o
imprevisível
do imprevisível
floresce o
o inesperado
e do inesperado,
eis seu fruto,
- doce -
impassível.

Que possamos colher, Samuel, desse fruto maduro e que a poesia chegue, assim, de mão em mão, de boca em boca, como num cordel teu, recontando as histórias de tempos sombrios que superamos!

Abraço carinhoso,

Jeff

(véspera das eleições pandêmicas de 2020)

P.S.: Fico no aguardo pra tomarmos dois dedos de prosa e uns tantos de poesia!

Imagem: Jeff Vasques

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