Campinas, dia cento e noventa e oito, do período da quarentena, do ano de 2020
Querida Laura,
Um beijo grande!
Minha querida neta, é com grande alegria que escrevo estas linhas. Primeiro, para matar a saudade, que está muito grande e, para contar um pouco de como as coisas estão neste mundo que você chegou há tão pouco tempo.
Você, a mais nova integrante da nossa família, chegou a este mundo há pouco mais de quinhentos dias. Isso mesmo! Quinhentos dias! Então, eu preciso contar que isto significa que dois quintos da sua existência, até agora, se passaram em meio a uma pandemia mundial.
Sabe Laura, embora eu tenha me valido da matemática para iniciar esta carta, no fundo mesmo, o seu avô é fã da palavra. Talvez por ser filho de um repentista, neto de uma poetisa, por parte de pai e de um bom contador de histórias, por parte de mãe. Com certeza, estas raízes tiveram alguma influência nesta escolha pela palavra.
Deixa-me contar uma coisa legal sobre mim. Seu avô é cordelista. Imaginei agora a sua carinha de interrogação, enquanto sua mãe lê esta carta para você. O que será que faz um cordelista? Será que ele é um especialista em cordas? Ou, faz listas de cordas?
Eu vou explicar bem rapidinho. O seu avô faz um estilo de poesia, quase que medieval, que, aqui no Brasil, ganhou muita força no nordeste brasileiro, onde eu nasci. É uma poesia popular, com rimas, com um ritmo cadenciado, por causa da métrica, e com uma história que cativa. No fim, é isto que importa. O seu avô é um contador de histórias.
Mas eu não estou escrevendo para você, neste momento, para falar de mim. Não. De jeito nenhum! Eu resolvi escrever para falar do nosso mundo e de você, nele!
Eu sei que você pensa que é normal, por exemplo, ver todo mundo com uma máscara no rosto ou as pessoas cumprimentando-se de longe, sem abraço, beijo ou aperto de mão. Aniversário bom para você é uma videoconferência bem animada, com sua família maluca, onde todo mundo fala ao mesmo tempo e ninguém entende nada e mesmo assim acaba em boas risadas. Um bolo com a mamãe. Sem crianças por perto, sem tios, tias, primo, avô e avó.
Talvez você ache natural não almoçar na casa dos avós no domingo e nem passear com seus tios e tias. No seu mundo, o normal é ver a mamãe todo santo dia. E, como ela ama você bastante, isto é o suficiente.
Sabe, Laura, meu amor, eu juro para você, que abraçar é bom, que brincar com seu primo Matheus, que tem o dobro da sua idade, é bem divertido; que ser paparicada por tios, tias, avós e bisavós é tudo de melhor nesta vida!
Aniversário legal é aquele com os amigos do bairro, da escola, os primos, familiares e tudo mais. Não acredita? Pergunte para o Matheus, na próxima videoconferência. No aniversário dele, de um ano, fizemos uma festança. Toda a família reunida. Você estava lá. Não lembra? É natural! Bebês têm memória curta. Temos fotos. Depois o vovô mostra pra você!
Estes dias todos foram tão diferentes, minha querida. Para todos nós. O avô planejou tantas coisas para fazer contigo e com o Matheus. Tantas histórias para contar. Enfim, logo estaremos juntos e sei que seremos capazes de recuperar todo este tempo perdido.
Seus primeiros passos eu vi num vídeo encaminhando numa mensagem de sua mãe, no nosso grupo da família. Suas primeiras palavras, em algum aplicativo de rede social. Sua alegria e sorriso, nas nossas videoconferências de aniversários. Já celebramos alguns nestes quase duzentos dias. Da sua mãe, do seu avô, o seu primeiro ano de vida, o segundo ano de vida do seu primo Matheus, dos seus tios, tias, dia das mães, dos pais. Quantas transmissões!
Que pandemia! Ela sozinha já seria mais que suficiente para nos deixar de cabelos em pé, não é mesmo, menina?
Aí você me pergunta: “E o que mais está acontecendo, vovô?” Eu respondo que, além da pandemia, temos uma Amazônia que já queimou bastante, um Pantanal e um cerrado ardendo em chamas, o meio ambiente ameaçado, os índios acuados em suas terras, o machismo, o racismo, o fascismo e tanto “ismos” que insistem em tornar este mundo mais complicado do que deveria. Talvez eu não devesse contar tudo assim, de uma vez só. Desculpa, minha linda! É só o mundo.
Agora sorria! O melhor eu deixei para o final. A vida é incrível, Laura! De verdade. Tem a poesia, tem pessoas queridas e as frutas! Ah! As frutas. Aliás, eu preciso dar umas dicas para você sobre frutas! Temos as flores, as aves, um céu azul, um pôr-do-sol todo santo dia e muitas noites de luar!
Outra coisa boa é um banho de cachoeira, um mergulho no mar, brincar de fazer castelo na areia da praia e, já aviso, você vai adorar esta parte. Brincar com areia, com terra e com barro. Sempre é bom!
Ficou curiosa sobre as dicas sobre as frutas? O avô fez uma poesia que se chama “frutas molecas”. Eu vou escrevê-la para você. Quer saber? A partir de agora fica decretado, nesta quarentena, que o soneto “Frutas Molecas” é uma homenagem do avô para você e seu primo, Matheus.
Caras lambuzadas e pernas cruzadas
Sentados alegres, no chão de um terreiro
Entre mordidas, barulhos, risadas
Uma fruta desperta o sorriso faceiro
Amora ou manga? – Melancia primeiro!
Pedem os donos das roupas manchadas
– Mancha de fruta, sai no aguaceiro!
Respondem as mães já acostumadas
Mexerica azedinha, abacaxi bem docinho
Melancia vermelha e o chão molhadinho
Viagem no tempo, lembranças sapecas
Colhidas no pé, eu sinto o gostinho
Da amora, da manga, bem perto do ninho
O gosto de infância das frutas molecas!
Como você percebeu, as frutas molecas têm como característica principal a de fazer bagunça. Quando consumidas, elas sujam chão, roupas, lambuzam caras e bocas. Graças a forma como devem ser consumidas, para que seus efeitos benéficos aconteçam.
Quando consumidas da maneira certa, os efeitos são alegria incontida, aumento da capacidade de voltar aos tempos de criança, desejo de estar com as pessoas que amamos e disposição para brincar.
Há de se cuidar dos efeitos colaterais, que podem ser o riso frouxo e roupas manchadas, que ficam limpas num aguaceiro. Ah! Aguaceiro é uma chuva boa ou aquela água que corre numa bica, sabe? Pode dar uma vontade enorme de brincar com alguém! Enfim, elas são deliciosas!
No começo da carta, o avô contou que era cordelista. Então, eu prometo que assim que isto passar eu vou declamar muitos cordéis para você e o Matheus. E vamos poder nos abraçar, passear, brincar e o melhor: Aprendermos um com o outro.
O desejo do vovô é que você, o Matheus e outras tantas crianças sejam capazes de tornar este mundo melhor do que tem sido ultimamente. Para isso, vamos abastecer vocês de amor, poesia, respeito, empatia, solidariedade, bondade e senso de justiça. Vamos contar histórias. Algumas tristes, para que aprendam como não fazer e outras muito felizes, para que vocês trilhem o melhor caminho.
O vovô deseja que você seja muito feliz, que aprenda cada vez mais, que tenha sua curiosidade aguçada sempre e que, um dia, você ame a poesia, tanto o quanto eu amo você.
No futuro, este mundo será seu, minha linda. Será de vocês.
Findo esta carta, com o meu coração repleto de saudade e esperança.
Amo você
Vovô