CARTA 34 – De Jeff Vasques para Rodrigo

Outro dia, Rodrigo, minha carta não chegou ao destino. E você bem sabe, poeta, das palavras que se perdem pelos caminhos… desse risco que corremos, bem aqui, entre a língua e olvido… Que o destino destas palavras não se perca, meu amigo, ainda que remetam ao impossível…

Tanto tempo, bicho, sem mensagem alguma tua! Sinto tua falta, Rodrigo, desse teu olhar terno e revolto pro mundo. Ainda mais nestes tempos de vírus, tempos virulentos. Viver é perigoso, disse, não o Rosa, mas um certo presidente cínico, diante da pandemia. Um “e daí?”, extremamente infeccioso, contaminou nosso tempo. Viver é criminoso. E você sempre soube disso, né, Rodrigo. Sempre viu essa doença por trás dos olhares vazios dos transeuntes. Aquele ódio que só agora encontrou condições pra viralizar. Te imagino acompanhando isso tudo, pensando como deveríamos estourar em greve, parar as fábricas, o medo, as máquinas, as mortes, exigir o fim da normalidade. Mas, por ora, querido, só a greve dos Correios é grave.

E me lembrei de ti, meu caro poeta carteiro, em meio à greve de 2014, me contando das cartas de amor extraviadas pelos piquetes e das encomendas em barricada. Naquela assembleia lotada da unidade da Glicério, 40 dias já sem correspondências, e você, tão animado, ousando pedir a palavra pra gente ler uns poemas, pra eu ler minhas “poesias de luta”. Esse teu desejo bonito (que compartilho) de deflagrar a palavra de(s)ordem dentro dos discursos enrijecidos…. você que, com um caminhão de som na boca, discursara tantas vezes a outros “girassóis de pano”, como se referia à categoria… que já lutara tanto, sabia que “hay que enternecerse, sin perder la dureza jamás”, como ousei dizer em algum livro (que você sempre lia).

Segue comprando brigas, meu amigo? Não consigo te imaginar descansando em paz, em qualquer lugar que esteja. Você sempre soube como a vida é luta, você é todo combate, Rodrigo… mas, talvez, não saiba como é, também, todo poesia. E isso me dói, amigo. Queria te fazer crer nisso nesta carta… que você incandesce as palavras, e que entre elas e tua prática nunca houve abismos. Você lembra o que fez quando a greve foi declarada “abusiva” pela “justiça”? Os fura-greve, do alto de seu medo, rindo… e você, todo verdade: fez dezenas de cópias de seu holerite de R$ 0,00 reais do mês parado, e entregou de mão em mão, de olhos em olhos, a cada trabalhador dos Correios de Campinas, em diversas unidades, e gritava, profeta, “Esse é boletim do sindicato! Vamos rir todos juntos! Vamos!”. Vamos rir do meu mês sem salário, dos 42 dias a repor, da falta de comida, do aluguel atrasado, do meu quarto de despejo, do filho que mal alimento, do meu passado miserável… Você, Rodrigo, é esse canto torto feito faca, que cantava Belchior, cortando a carne dos hipócritas. Ah, meu amigo, o quanto de você não está nestes versos que escrevi outro dia?

Hasteia tua tristeza / tão alto quanto possas / quanto mais gente a veja / menos tua, mais nossa… // sim, sei que triste segue a tristeza // mas, veja, // se nos céus se encontram nossos olhos, / mais que dor, / empunhas uma bandeira”.

Em seguida, você se demitiu. (Faria tudo de novo?) Sei que era demais o abuso… Mas, aí, veio o aluguel, e a comida, e o filho, e a cobrança dos Correios pelos dias parados, e teu trompete quebrado pela polícia, e nenhum emprego, concurso, e o desprezo, “e daí?”, e o desprezo… e, então, você se demitiu de tudo. Não avisou ninguém e se foi, se fez mundo. (Achaste a saída?) E já se vão 5 anos sem teu sorriso miúdo, envergonhado, manso… Quero saber de ti, meu amigo, quero um verso soprado em meu ouvido, um sinal, um presságio, esse teu Chet Baker tocando, agora, de surpresa, no rádio.

Pô, bicho, nos deixar assim… E nem me responda se desculpando, que você sempre se desculpou demais. Tento acreditar que segue caminhando, inconformado com tudo. Eu compreendo tua decisão, apesar da raiva que, às vezes, ainda sinto. Eu, mesmo, sequei, Rodrigo, e, desde o coronavírus, nada escrevo… logo eu, que faço tanta poesia a partir das notícias de jornal, agora, mal consigo olhar as manchetes. Quando o inimaginável se faz chão, o que pode a poesia, a imaginação, amigo? Quando as metáforas, como “um mar de lama”, no caso de Mariana-Brumadinho, se tornam realidade, Rodrigo, o que pode fazer o poeta? Inventar novas palavras prum mundo caduco ou criar um novo mundo pras velhas? E se você responder que é preciso agir, agir a poesia, eu vou concordar, claro… mas, também, insistir que sem você, mano, anda mais difícil subverter a ordem, as palavras.

De tempos em tempos, te releio, poeta… sabia disso? Essa tua chama me iluminando, agindo no que faço, no que escrevo. Inclusive, tem duas poesias, no meu último livro, sobre você. Leu? As coloquei ali pra que você risse dos clichês e me respondesse indignado e voltasse pros seus. Ah, e espero que tenha te chegado o “Psiu!”, livrin que escrevi pra crianças de todas as idades. Narra a vida de um velhinho em situação de rua, de lua, de luta. E tá lá dedicado a você, que foi pelos teus olhos que entendi melhor as ruas e as coisas desimportantes, miúdas, que ninguém abraça… como o silêncio que só um humano dormindo em calçadas dispara. Silêncios, que você, trompetista do fim dos tempos, sempre escutava.

Mano, sei que é estranho querer retomar contato num momento como esse, de pandemia. Mas, sei lá, queria mesmo você aqui, agora, do meu lado, pra romper esse isolamento em que nos moldaram (não o do covid, necessário), e irmos de novo rodar o centro de palhaços. Lembra, Rodrigo? Da gente se maquiando no banheiro do Pão de Açúcar, ali do Cambuí, e depois nos apresentando pelos bares, pela praça Carlos Gomes… “você me ensinando a coragem / eu te ensinando a companhia // dois bobos rindo do mundo, / dessa máquina… / esse riso inútil e necessário…

E você nem sabe, bicho, aquele número de valsa que criamos, onde eu dançava com uma mulher linda – cabeça de bexiga num vestido vazado, metade do meu corpo dando, a ela, vida – e você na trompa denunciando a solidão… manja? Tá na apresentação que montei de palhaço, “O Circo da Miséria: o maior desespetáculo da Terra!” (Já deve estar rindo com esse título!) E me emociono toda vez que faço essa cena… por você nela, por teu olhar irmanado com os sem-nada, que é a base desse trabalho. Aliás, você segue saindo, palhaço, com sua trombeta anunciando apocalipses? Como vai a jornada? Fez seu rumo?

Eu tenho tentado achar o meu, querido, e, certo, devo ter cruzado contigo em alguma praça movimentada da América… você, tímido, nem deve ter me avisado, me seguindo pari passu. Fui com a “Poderosa Dulcinéia”, minha kombi-casa (você vai amá-la!), numa desventura mais quixotesca-menos guevárica. Você sabe, sigo lutando contra moinhos, contra as engrenagens, no encalço dessa poesia que possa ainda se fazer praça, pão.

Que é sempre essa mesma pergunta de Drummond a nos encarar, com olhos de horror e graça, e com a qual encerro esta carta, Rodrigo, na esperança de que não me faltem tuas palavras: e se todos nós vivêssemos, meu irmão?

Jeff (primavera de 2020)

Imagens: Jeff Vasques

Deixe um comentário