CARTA 33 – De Adriana Zapparoli para o senhor da Portaria

Prezado Senhor de uniforme puído em tom de azul marinho e cinza … Olá!

Da minha janela, eu traduzo nossas rotinas meio à pandemia. No início, confusos e perdidos. Eu sei, nós estamos aflitos. Íntimos e distantes. Eu sei da sua idade de pouco mais de 75, a sua lida na portaria. Sua marmita. Horas de sua vida, entre outras horas que lhe devem ter ensinado a ser incansável; arriscar a vida pela subsistência real em uma portaria. Claro, a quantia advinda se soma ao resíduo de um salário-mínimo da sua aposentadoria: não morrer de fome. Sofro pensando em nossos idosos expostos à COVID; sobre a atenção, eu sei que sofrem com o enfraquecimento da seguridade social em um momento em que mais precisam de proteção… Então, eu olho para o teto ao cair da tarde e vejo outro ancião. É meu pai… e quase lhe toco a mão…

em meu leito de morte clamarei meu pai, Miguel Arcanjo, os cata-ventos e as moléculas de carbono …

Essa foi a última frase que eu redigi para ele. Ela está impressa em uma placa de prata.

Os dias seguem infinitos entre as árvores da calçada… são flashes indecisos de bem-te-vis entre nós. Da minha aflição, mesmo em reclusão, eu pensei que ficaria bem, assim como você, mas eu estou olhando pela sacada, pela vidraça entre registros. Não me posso autointitular poeta. Deveria ser muito mais liberta para isso. A escrita surge em onda. Reverbera sempre uma fase específica de minha vida. Um dia eu lhe mostrarei as plaquetes poéticas produzidas em misto de poema em prosa; sigo reescrevendo conteúdos sobre os diferentes olhares femininos e suas vivências sociais. Tão mais do mesmo, o senhor diria? Talvez. As mulheres sofrem ao ver o feminino sofrido diante do abismo. Elas estão encarceradas em meus livros… Mesmo que o escrito dê a impressão de hermetismo; há um arquétipo feminino a sentir aquilo. As impressões, que não são inspirações, são fatos os quais eu presenciei e traduzi em poesia; feito a poesia vista na guarita:

e aquele velho lobo marinho de ombros lobados e olhar franzino, suporta o calor do sol, meio aos vasos de flores e ondas de refrigerantes… enquanto isso os vírus nos observam de perto. de longe: a guarita…,

mas devo dizer que, eu não tenho apenas a escrita poética como forma de expressão. Traduzo vídeo e produzo imagem digital: são as palavras soltas que encontro… elas estão perdidas no mundo em cataclismo, nos postos de gasolina e nas farmácias. Falando nisso, o senhor ingeriu os seus medicamentos do dia?

Digo-lhe ainda, com o distanciamento social me tornei depressiva. Por uma velha índia laranja morta pela COVID e pelos amigos que passaram fome meio à pandemia.

O dia não me parece ventilado. Definhar são pensamentos obscuros. Mas daqui do alto, eu lhe vi em imagem de força. E senti vergonha por me queixar tanto… Minha vida e sua vida. Como o senhor está? Diga-me …

Ah, eu nem mencionei o meu nome…

Adriana Zapparoli.

Imagens: Adriana Zapparoli

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