Carta 4 – De Katia Marchese para Cida

Campinas, 26 de agosto de 2020

Boa tarde, Cida!

Você chegou em casa pela voz da nossa amiga Beth. Ela encurtou o tempo, afinal nós só iríamos nos conhecer em dezembro de 2020, lá, no seu Centro Comunitário, para falar de poesia junto com as mulheres das rodas de leitura. Essa doença está mudando nossas vidas e adiando os planos. Mas daremos um jeito de estar perto estando longe, pois só podemos contar com a gente mesmo, né, Cida? Você chegou em boa hora.

A Beth deixou comigo o livro “Entre linhas e trilhos da memória – a ocupação conta a sua história”, feito pelo seu grupo de mulheres. Marquei as páginas em que você fala da luta para ocupar a terra, das vidas cortadas pelos trilhos do trem, dos meninos mutilados, dos “desmanchamentos” das casas à beira do córrego e me emocionei com o pote em que você guarda um punhado da terra do local onde construiu sua casa.

No livro, é bonito seu agradecimento à companheira que foi sua escriba: “Ana, você escreveu minhas palavras porque eu ainda não sei bem como se desenha o que eu digo, muito obrigada”. O seu dizer tem força e nesses dias de sombras é bom ler gente que coloca sol nas palavras.

Sei que precisou parar o curso de alfabetização para morar por um tempo no abrigo de proteção às mulheres. Você foi corajosa, Cida, defendendo sua vida assim como defendeu seu chão. Você vai voltar para casa e para seus estudos, tenho certeza.

Quando a Beth me procurou, dizendo da sua vontade de conhecer uma poeta, eu disse a ela que adiantaria nosso encontro te escrevendo esta carta, para que a gente possa se conhecer, ir conversando. Sei que onde está tem alguém que poderá ler esta carta para você.

Eu também moro perto da linha do trem e de um córrego, mas aqui, nesta cidade, as linhas do trem e das águas são diferentes e marcam de forma desigual a vida da gente.

Aí, no Aparecidinha, os trens carregam máquinas pesadas, os trilhos estão abandonados de cuidados, o córrego enche e leva as casas. Dia e noite há perigo. Aqui, no Anhumas, a “Maria Fumaça” só passeia nos finais de semana, o córrego nem se vê e não tem cheiro, tudo está arrumado. Nem parece a mesma cidade.

Cida, sabe o que mais gostei de saber? Foi da sua vontade de escrever poesias com as palavras que andam de um lado para o outro dentro da sua cabeça. Eu sei o que sente…comigo também acontece. A gente está lá, cuidando da vida e, de repente, as palavras ficam dizendo coisas para gente; dá medo perder o poema que fica só na cabeça. Descobri que temos algumas coisas parecidas: temos quase a mesma idade (estou com 58 e você, 63 anos), nós duas nascemos perto do mar e depois viemos morar em Campinas e, assim como você, também demorei muito tempo para descobrir que sou poeta.

Eu nasci em Santos e minha história com a poesia começa lá na adolescência. Eu devia ter uns 12 anos, gostava de ir a um cinema em que as paredes tinham versos pintados com letras imensas. Acho que foi a primeira vez que vi um poema na minha vida. Eram versos de Martins Fontes, um poeta da minha cidade.

Trago também na memória as tardes em que visitava meu pai, na casa da minha madrasta. Na sala, tinha uma estante cheia de livros. Ela era uma mulher dura e muito brava, mas gostava de ler poemas em voz alta e me deixava folhear os livros que ela escolhia.

Comecei a trabalhar cedo e assim podia ir à livraria da minha cidade para comprar meus próprios livros. Parava diante das estantes de poesia e pelo título dos livros escolhia os poetas: Gabriela Mistral, Pablo Neruda, Clarice Lispector, Carlos Drummond de Andrade. Assim fui tomada pela poesia para sempre. O mundo, Cida, às vezes, é mais belo quando lido do que quando visto.

A Beth me disse que sua filha lê para você os livros do centro comunitário e que você gosta de decorar as letras das músicas. É bom ouvir as palavras, não é? As palavras das canções sempre dizem algo importante. Quase sempre, na vida, a gente não sabe o que é… a gente vai descobrindo o que pode ser, e se tornar poeta é uma delas. Uns começam mais cedo e outros, mais tarde.

Cida, sempre trabalhei e estudei ao mesmo tempo. Mais tarde, veio a família, a profissão de Assistente Social, enfim… a poesia ficava apertada demais dentro de mim; eu escrevia quando sobrava tempo, mas não parei de ler e de querer os livros de poesia. Depois do filho crescido, voltei a escrever um pouco mais, porém não abracei a poesia totalmente. Era insegura com a minha escrita. Li tantos poetas que acabei acreditando que não poderia escrever tão bem quanto eles.

E mais uma vez adiei o tempo de ser poeta. Agora, depois de outro tanto de tempo, decidi não adiar mais nada. Voltei aos estudos e aos projetos de criar meus livros de poesia. Fui selecionada para vários cursos que formam escritores em instituições de Campinas e São Paulo. Os professores me ajudaram a encontrar e acreditar na minha própria voz de poeta.

E no ano passado, Cida, ganhei um prêmio para poder publicar meu primeiro livro de poesias e foi esse livro que nos aproximou. Faremos as rodas de leitura e oficinas de criação, lá, no seu centro comunitário. Esse livro, chamado “Mulheres de Hopper”, será nosso começo. Tem um poema que quero que você conheça, antes do nosso encontro chegar.

ROTA 86

Ao centro,
sentada na cama,
a mulher posa
mala e corpo.
E algo nos olhos cala
a tragédia que provocou.
Sabe, eloquente,
que o inferno de uma vida
entre quatro paredes
será iluminado
pela luz do mundo exterior.

Lá fora, o carro aguarda
a velocidade dos seus sapatos.

Cida, a poesia é nossa sobrevivência. Mesmo que demorem os livros, ela nos sustenta diante das perdas, da violência na família, da fome, da doença. Não é fácil a vida, ela chove e tanto que, às vezes, afoga as lágrimas e não as mágoas. Quando a gente pensa o poema dentro da cabeça e vai dizendo ele em voz alta até decorar, é como se tirássemos um punhal.

Fico aqui pensando no seu livro que conta as histórias da ocupação. Você fala do lote riscado no chão, demarcado. E sabe, penso que quem fez tudo isso foi a faca da tua poesia.

Cida, conheço uma poeta, a Tatiana Nascimento Santos. Ela me disse que faz um poema por dia como se fosse remédio… tenho vontade de passar essa receita para mim mesma, aliás… para nós duas. Neste momento em que estamos trancadas por dentro, sem ver as ruas e as pessoas que amamos, vai ser um bom remédio. Queria muito que a gente pudesse trocar poemas-receita.

Se você aceitar, podemos começar escrevendo suas poesias e eu gostaria de ser sua escriba-poeta. Assim como a Ana desenhou suas histórias, eu posso desenhar seus poemas. O que acha? Você pode gravar os poemas que estão dentro da sua cabeça e me enviar por mensagens de WhatsApp, usando o celular aí, do abrigo. Eu escrevo seus poemas num caderno e depois mando pela querida amiga Beth. Vou também mandar áudios com os poemas que estou fazendo.

A gente não faz poesia sozinho, Cida. Precisamos uns dos outros. Como na vida, poeta que fica sozinho… se acaba. Tenho esperança na reconstrução de tudo o que foi destruído e perdido nestes tempos tão escuros. Estaremos lá, na roda de poesia, do centro comunitário, com ou sem máscaras, mas sem medos.

Cida, sairemos das casas, voltarão as danças, o abraço. “E o amor voltará a mover o Sol e as outras estrelas”, como escreveu o poeta Dante Alighieri. Então o sol secará nossas lágrimas, a luz fará renascer o entusiasmo e nossos cadernos de poemas serão livros. Espero que aceite meu convite!

Abraços longos, da poeta Kátia

LIBERDADE

Katia Marchese

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