Carta 3 – De Fausto Antonio para Agatha

O mundo com seus tentáculos
não merece uma criança ingênua.
Dessas de osso, cem por cento
carne, o resto riso e lágrimas.
Há de saber, antes, dos perigos
da luz clara da manhã.
Do veneno que se esconde, antes,
no amor.


Agatha, em tempo de covid-19, estamos isolados. A rigor, o nosso isolamento não se limita à conjuntural epidemia; nosso isolamento é histórico, socioespacial, racial, de afogamento da auto-expressão negra e de brutal violência policial contra a juventude e crianças negras. As nossas trocas, circulantes pelas cartas, se ocupam do afogamento no anonimato da escrita e recepção negra e, por igual violência e exclusão, das crianças negras. Você, no emaranhado das suas carapinhas, sabe exemplarmente do que falo.

Agatha, minha florzinha preta, pouco se sabe das intimidades das crianças negras mortas pela polícia militar brasileira. Conquanto se reconheça, meu anjo, sua intimidade no meu texto “Isolados e Emparedados”, posto que a negrura ali não é tão-somente anúncio e sim uma profunda enunciação; não há, no Brasil, espelho para materializar em imagens, sonhos e realidade o que somos. Sim, no Brasil não há espelho para todos e todas; negros e negras são invisíveis. Crianças negras não tem registros humanos e humanizados. Restam as dores para as mães, os pais e os pares. “Isolados e Emparedados”, pretinha, somos párias. As mortes de jovens negros se multiplicam pelo país; os silêncios, as indiferenças e omissões racistas também se multiplicam. Se fecham também, num cárcere de cordialidade e democracia racial que não há, para excluir autorias e coautorias negras e empatizadas; quaisquer que sejam as raças e/ou etnias, com a literatura negro-brasileira .

Daqui de Campinas, interior de São Paulo, chorei a sua morte e tantas outras. Fui, no meu exercício de poeta, romancista, contista e dramaturgo, além das lágrimas. Escrevi, encruzilhando a sua, a minha e as vidas de Cruz e Gavita, “Isolados e emparedados, Oriki para Agatha”, peça num único ato e seis cenas. Agatha, escrevi de joelhos e tocado pelas emoções, que são as âncoras mais fundas para as nossas reações , convulsões e levantes.

Sei, no tocar para descer e subir, num eco de memória, o peso da morte na infância. Na “Memória dos meus carvoeiros”; romance situado em Campinas e de funda raiz ancestral, fiz, lavrado pelas memórias, o registro da morte da minha irmã caçula, Rosângela, que nem sequer completara dois aninhos. As lembranças são doloridas e a elas se juntam, então, a despeito do racismo e do país que temos, nossas lutas e a valorização da infância.

Agatha, quando construímos autorias e coautorias negras, estamos num campo de luta. Sem tais cuidados ou enunciações; as recepções são produções universalizantes. As recepções não são universais, elas têm agência e localização. É o caso dos meus livros infantis “ No Reino da Carapinha,” ilustrado pelo Junião, e “A Máscara Falante”, ilustrado pelo Egas Francisco. Os livros acima assentados, meu amorzinho, são obras cujas recepção, a coautoria, e a autoria são negras. Não há limites, no entanto, para as empatias múltiplas; isto é, recepções brancas, amarelas e indígenas podem e devem tomar o lugar, na coautoria, para viver e vivenciar o ponto de vista, a história, a complexidade dos personagens, a linguagem, a cosmogonia, a enunciação e especialmente a auto-expressão negra.

Agatha, conforme me autointitulei, sou um escritor negro às avessas dos recalques impostos pela branquitude totalitária. A partir desse lugar de criador, deixo para você, para selar o nosso encontro, os versos que abrem esta carta, e que foram publicado na página 131 da coletânea “Vinte anos de Poesia”, também os meus livros infantis e, enredilhado no presente, passado e futuro, oferto sentidamente o poema; um Oriki, que me veio precipitado e em lágrimas. Enquanto leio, no seu ouvido, sinto o ruflar das asas do anjo de ébano e tudo se inunda do cheiro de alecrim e jasmim. Leio, florzinha preta, e choro.

Oriki para Agatha

Agatha e Gavita tocaram as estrelas em Cruz. Gavita tocou em nome do Cruz desterrado; Agatha em none dos negros mortos e emparedados. Em cruzes , espadas ogivas zumbindo, soaram tambores de bocas.

ll

Amor e morte, Agatha, extremos e próximos beijos.
Um é carne, o outro; fogo branco, da carne se desfaz.

lll

Amor e morte, extremos tão próximos,
um queria o viço de fogo e saliva,
o outro; o corpo todo em cinzas
ou em fogo branco se consumindo.

lV

Agatha, toma o meu beijo
no teu corpo frio, a minha cruz
encruzilhada no Cruz que, do Desterro,
vela com vozes zumbindo nossos beijos
negros flagelados por balas brancas
dilacerantes e silêncios de bocas e beijos divergentes;
o meu, Agatha, é brado e vida, o outro;
mudo branco fogo, é morte e dele balas brancas

vulcanizadas vazam velozmente corpos negros.

Agatha, toma o meu beijo zumbindo Palmares. Toma!

Com incontido afeto,

Fausto Antonio

Campinas, 26 de julho de 2020

Imagens das cartas: Fausto Antonio

2 comentários em “Carta 3 – De Fausto Antonio para Agatha

  1. De uma sensibilidade enorme. Fausto coloca em sua poesia, de modo muito delicado e corajoso, a dor fincada em nossos peitos negros pelo o genocídio de nossos jovens

    Curtido por 1 pessoa

Deixe um comentário