CARTA 14 – De César Póvero para Katia Marchese

Campinas, um dia após o outro, de 2.020

Distante Kátia,

Que bom poder te escrever, nada mais nostálgico do que escrever uma carta, me faz voltar no tempo, e você, sente isso também? É um ato tão poético e romântico, independente de romance, no sentido literário mesmo, as tantas histórias e relacionamentos dos mais diversos tipos, que duram e se perduram através de cartas para quem está longe.

Porém nós, em tempos de isolamento, qualquer pequena distância se faz ainda mais distante… e por falar nisso, apesar de não conhecer sua casa, fiquei imaginando… você indo até a caixa de correspondências num jardim, cerca baixa, flores, e buscando-a, sua casa próxima à natureza, um córrego, não é? E mais que tudo, a poesia de viver perto da linha do trem. Me fez refletir sobre as linhas da escrita poética, as entrelinhas, a linha de chegada ou partida, a linha tênue, o divisor de águas da vida de alguém, são as linhas da vida. Não é mesmo? Como as estações de trem!

E como tem sido, Kátia, as suas linhas, as de sua vida, as de seu trabalho durante a pandemia? A Kátia poeta e a Kátia mulher? Você tem praticado o exercício do “escrever poemas diariamente como uma receita”? Adorei a sua ideia!

E enquanto você vive próxima à natureza no Anhumas, eu vivo aqui no centro, perto do abandonado Centro de Convivência, habitat bem distinto, o seu do meu.

Acredito que com o tempo nos isolamos, ainda mais nós poetas e escritores, o tempo nos faz querer sossego, por enquanto eu preciso estar no meio de tudo, no olho do furacão, mas já sinto mudanças em mim, este isolamento me fez ainda mais gostar, do que já gostava, ficar comigo mesmo. Mas ainda gosto muito do concreto armado das grandes cidades, poesia urbana. Sempre achei Campinas pequena demais para mim, não em extensão territorial, mas sim em efervescência cultural de forma geral, sempre a senti fechada, com pequenas bolhas, e provinciana. Posso falar isso do fundo do âmago, pois nasci e cresci aqui, isso faz 50 anos.

Já você, a mulher que veio do mar… se me permite esse título poético também? Eu já não sou um homem de mar e de sol, mas se eu tivesse vindo, como você, de uma cidade praiana, não sei se conseguiria ficar longe do som do mar, de sua energia, a paz que o mar transmite.

Em tudo o que li de seus poemas, não me lembro de ter visto o mar, não que tenha que ter; acho que meus poemas NÃO trazem minha cidade, trazem minha alma, e nossas almas criativas nem sempre são do mesmo lugar no qual nascemos. Mas gosto muito da força feminina e levemente mística e ou mítica que seus textos têm, suas obras têm uma brisa, talvez daí venha o mar, um frescor que sopra no rosto, saudavelmente fantasmagórico, me veio a Clarice, mas me veio muito a nossa Hilda em uma de suas vertentes, que morou e morreu em Campinas.

Kátia, acredito que os artistas, os poetas que estão vivos como nós e que vivem de certa forma pela poesia, ou da poesia, ou com a poesia, ou para ela, são verdadeiros “heróis da resistência”. Sobrevivemos de poesia e lutamos porque, ao meu ver, o nosso país não valoriza a educação e a cultura como alicerce do ser humano, tão importante quanto a saúde, a alimentação ou a moradia. E nossa cidade sofre de um descaso a se perder de vista, mesmo porque quem trabalha com cultura tem que entender e gostar da mesma. Fatores tão básicos que poderiam ser resolvidos para que a poesia se espalhasse pela cidade, assim como as demais manifestações culturais, ocupando os diversos espaços, já abandonados pelo descaso em nossa cidade.

Pensando na linha do trem que passa perto de você, na bela estação Anhumas, que já serviu de cenário para o mundo da ficção, tão pequenina e pitoresca, penso na “Estação Cultura” aqui no centro, tão grande, sempre tão malconservada, desestruturada, malcuidada e mal aproveitada, tanto espaço deixado ao descaso, como estação de trem e como local de cultura. Afinal, quem foi que anulou os trens como transporte de nossas vidas e de nossas histórias? Abortando a função das linhas férreas de unir pessoas distantes…

Vou me despedindo por aqui, por estas linhas e entrelinhas do papel, aguardando notícias suas, querendo saber da poesia dos teus dias, do alimento da tua alma, já com saudades de ti e dos teus versos. Quem sabe se, depois dessa fase nebulosa, não nos sentamos a mesa para tomarmos café com bolo de fubá, gosta? Não me lembro…

Abraços poéticos, aqui do…

César Póvero

Imagens: César Póvero
Clique aqui para ler (ou ouvir) a resposta de Katia Marchese a esta carta.

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