CARTA 10 – De Katia Marchese para Fausto Antonio

Campinas, 05 de agosto de 2020

Caro Fausto Antônio,

Como estão teus dias? Espero te encontrar em meio às artes que salvam das doenças. Inicio nossa conversa dizendo que me fez muito bem, nesses dias confinados pelo medo, poder ler e experienciar as palavras e as imagens da sua poética no livro Patuá de Palavras, o (in)verso negro.

Foi prazeroso inverter sentidos, desmanchar tramas e ter nas palavras um patuá que abre janelas, descoloniza as palavras e os seres dos seus lugares marcados. Com certeza teremos a chance, neste projeto “apoesiasobrevive”,em que trocamos cartas entre poetas da nossa cidade, de dizer uns aos outros das inquietações que nos movem, dos temores que nos assolam.

Hoje quero começar com tua “Meta Concreta”, ela traz espelhos e libera ressignificados, me permita a partir da sua voz, apontar as provocações da memória, os poemas que puxam outros poemas e ideias surgidas em meio a leitura. Então começo por este teu poema:

MAIS –VALIA

LIA

CIA

NOME

FOME

CAPITAL

ISMO

Você propõe: “Esse poema pode ser desmontado, nesse exercício, descobre-se a polivalência das palavras, basta para isso apenas inverter as suas posições no espaço em branco, o que era efeito passará, então, a ser causa”. Aceito a provocação, e neste jogo de espelhos do meu embaralhamento, salta a palavra FOME.

Efeito

nos dedos, o vermelho

pisado das vendas

acaricia

as carnes.

&

a lâmina

dos olhos

fatia no ar

a FOME.

Causa

Fausto Antônio, também a palavra LIA saltou, e enquanto percorria os textos e vídeos, fui ouvir as cirandas da adolescência. Aprendi Ciranda, com a vizinha Dona Celeste, pernambucana orgulhosa de conhecer LIA, por anos quase toda semana na sua vitrola se ouvia LIA e começava assim: “ Eu amo a falta de silêncio do mar, Odoyá, Odoyá.

Ainda bem que a força de LIA se impôs ao capital e aos seus ismos e a essa pandemia. Ando comovida nesses meses de separações, tudo arrocha e aflora rápido demais. Sabe, a Ciranda virou um patuá de palavras que carrego para me proteger das faltas. Vou aqui deixar uma Ciranda que gosto muitíssimo, cartas não tocam a música (eu sei…), mas deixo a imantação que ela me traz.

Minha Ciranda

(anuncia Lia)
Eu sou…Lia da beira do mar.
Morena queimada do sal e do sol
Da Ilha de Itamaracá.
Quem conhece a Ilha de Itamaracá
Nas noites de lua
Prateando o mar.
Eu me chamo Lia e vivo por lá.

(entra a caixa na marcação
e os metais envolvendo os movimentos)

Minha ciranda não é minha só
Ela é de todos nós
A melodia principal quem
Guia é a primeira voz.

Pra se dançar ciranda
Juntamos mão com mão
Formando uma roda
Cantando uma canção.

Esta Ciranda é uma forma de me aproximar das tuas Oriquissonâncias. Tenho a impressão através dos áudios (na sonoridade, não sei se sou boa aluna) dos teus Orikis, que quem nos guia a melodia principal é a primeira voz, como diz a poesia de LIA.

Na sua carta de apresentação publicada na internet, para a pequena Agatha, você nos convida a conhecer e partilhar da literatura negra.

Não há limites, no entanto, para as empatias múltiplas; isto é, recepções brancas, amarelas e indígenas podem e devem tomar o lugar, na coautoria, para viver e vivenciar o ponto de vista, a história, a complexidade dos personagens, a linguagem, a cosmogonia, a enunciação e especialmente a auto – expressão negra.”

Quando ouço o Oriki me deparo com uma força calcada na explosão da ação, não é preciso metáforas. Ele canta e conta a verdade de uma história, é um poema de outras sonoridades que não sei dizer, só sentir. E foi nesse caminho do sentir que me entreguei.

As pausas, sim, foram nas pausas em que assentei dentro do Oriki para Agatha, e ali vi seu corpo transpassado pela bala de prata branca, que sempre escolhe um corpo negro. Dentro do silêncio, olho para os lados e procuro Vanessa, mãe de Agatha, imediatamente a carne esfria de pavor e mudez. Sentir a perda de um filho que você imagina protegido no seu colo, e estar constantemente, sob a égide deste teu verso “Amor e morte, extremos tão próximos”, eis os horrores da vida de uma mãe negra.

Cúmulos


(para Vanessa)

Nunca mais
olhou para o céu
esse túmulo de seus mortos.

[o azul é vingativo)

Girou o eixo,
a Terra paira sobre sua cabeça,
o verde pende
e agarra as mãos.

Deixa aos pés, o abismo.

Dar as costas aos céus e me irmanar à Vanessa pela maternidade que nos une, mas sei que ainda existe outra realidade cruel a ser vencida. As mães brancas não perdem seus filhos na mesma quantidade e brutalidade das mães negras. Por isso os Orikis precisam ser construídos diariamente pelos poetas, e cantados de mãos dadas por todos nós. Como nas cirandas de Lia, a vivência dos seres em poesia sobreviverá as injustiças ancestrais.

Fausto Antônio, ficaria aqui ainda proseando a poesia contigo, há tantas coisas que me senti instigada a conhecer e a indagar (falar sobre pedras, sonoridades pandêmicas…), mas acho que já prendi o tempo por demais dentro desta carta. Agradeço a escuta e aguardo teus retornos.

Abraços,

Katia.

Imagem: Adauto Marcosin
Clique aqui para ler (ou ouvir) a resposta de Fausto Antonio a esta carta.

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